Texto extraído Do coração do Yoga, Leandro castelo Branco, siga e curta o canal dele no youtube:
“restrição” – são as condutas éticas, as atitudes que devem ser tomadas
para que a vida em sociedade seja harmônica e, com isso, a mente
seja livre de conflitos com as outras pessoas. Assim, são cinco os primeiros
valores a serem observados pelo praticante:
Ahimsa > não-violência
Numa das vezes em que Swami Dayananda, um dos maiores expoentes
do Vedanta Não-dual no mundo, veio ao Brasil, ele escutou a
seguinte pergunta feita por uma senhorinha que estava na platéia:
“Swami, hoje a violência está presente por todo o lado em nossa cidade,
temos medo até de sair de nossas casas, gostaria de saber o que
pode ser feito a respeito disso?”. Swami não fez nenhum rodeio e respondeu
simplesmente “Seja menos violenta”.
Todos que estavam presentes ficaram espantados com a resposta,
demorou um pouco pra cair a ficha. Como aquela senhorinha
meiga, magrinha, com todos os cabelinhos brancos estaria ligada à
violência do Rio de Janeiro? A resposta é que a não-violência é uma
escolha. E uma escolha que temos de fazer diariamente.
O fato é que, sejamos honestos, o mundo às vezes parece um
lugar muito irritante. Situações irritantes, clima irritante e, acima de
tudo, pessoas irritantes. Sem nem pensar muito poderíamos citar
umas cinco pessoas que fariam Madre Teresa ranger os dentes e querer
bater nelas com um tamanco.
Por outro lado, poderíamos também concordar que tem dias
em que o mundo parece perfeito. Dias em que nem mesmo um flanelinha
querendo R$50 pra deixar você estacionar numa vaga que nem
é dele, pode estragar seu dia de praia. O mundo muda de um dia pro
outro ou somos nós?
Razões para brigar e mandar alguém pro inferno há de sobra
por aí, e se formos esperar circunstâncias ideais para sermos não-violentos,
ou “não-reativos”, vamos passar a maior parte dos nossos dias
dando patadas em alguém. Temos que identificar a causa da vontade
que nos leva a querer esganar alguém, e não precisamos ir muito lon40
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ge para achá-la – o problema fundamental é a nossa noção de “eu”
(ahankara). Esse “eu” que quer, que não quer, que gosta ou não gosta,
esse “eu” que se sente ameaçado por um olhar meio esquisito do jornaleiro
da esquina. Esse “eu” ameaçado gera insegurança. E, infelizmente,
gerar insegurança é muito fácil.
Este corpo e esta mente com os quais no identificamos sempre
encontrarão seus limites em algum lugar – numa situação, ou
frente a outra pessoa. E frente à limitação, diante daquilo que não
podemos (ou achamos que não podemos) fazer deriva a insegurança.
Ok, e daí? Daí, que a insegurança – sentir-se de alguma forma
ameaçado – gera violência. E se nos sentimos agredidos, agredimos
também.
E por que? Porque somos, normalmente, pessoas “reativas”.
Identificamos a causa da insegurança como sendo um fator externo e
reagimos. Mas, na verdade a insegurança vem de nós.
Em linhas gerais, então, somos violentos no nosso dia-a-dia
porque somos “reativos” na ânsia de proteger esse “eu” inseguro. Fuzilamos
com o olhar, gesticulamos (às vezes bem explicitamente!), xingamos,
batemos e, no fim, pra quê? Pra ficar “quites”? Se não estamos
bem com nós mesmos, agredir o outro não vai solucionar nada. Na
verdade, vai só piorar porque o “outro” também tem sua insegurança,
também vai se sentir ameaçado, e vai responder à altura. Dizem que
Gandhi, talvez o maior expoente da não-violência nos tempos modernos,
um dia disse “Olho por olho… e ficaremos todos cegos”.
O ponto principal, portanto, para ser não-reativo é trabalhar
nossa própria insegurança. Quando estivermos seguros de nós seremos
pessoas tranqüilas naturalmente. Mas, enquanto isso, ser nãoviolento
é uma escolha. É contar até 10, respirar fundo e só então escolher
o melhor meio de agir. Não se deixar levar pelo calor do momento,
pela energia da raiva, do orgulho ferido.
Porém, atenção: ter autocontrole não é o mesmo que ser uma
“mosca-morta”! Não é aceitar uma injustiça passivamente, mas reagir
com respeito, honestidade e moral – as mesmas coisas que podem
nos ter sido negadas. Não é ser um “capacho”, mas saber perdoar. O
ponto é que respeitando o próximo respeitamos a nós mesmos e, de
quebra, ganhamos uma mente menos estressada. Estar consciente de
nossas próprias atitudes é nossa primeira contribuição para diminuir
a violência que nos cerca. É a velha máxima – “Não faças aos outros o
que não gostarias que te fizessem”.
Asteya > honestidade
“Num comício daquela pequena cidade, dizia o prefeito:
— Minha gente! Durante todo o meu mandato, coloquei a minha
honestidade acima de qualquer interesse político. Vocês podem
ter certeza de que neste bolso – e batia no bolso do paletó com uma
das mãos – NESTE BOLSO, nunca entrou dinheiro do povo.
Neste instante alguém grita:
— Paletó novo, hein?”
Talvez você tenha rido da piadinha acima, apesar de que ela
nem é tão engraçada assim. Mas o que é ainda menos engraçado é
pensar que hoje muitos dos representantes da nação nutrem um desprezo
tão grande pela honestidade. A coisa chegou a tal ponto que a
percepção popular de um bom político se resume na máxima “rouba,
mas faz”, que, aliás (e por incrível que pareça), foi um slogan não-oficial
que rendeu votos a Adhemar de Barros na década de 50. É triste
ver que esse oba-oba com o dinheiro público não é de agora.
Cultura inútil à parte, isso nos traz à questão fundamental da
desonestidade: o que leva uma pessoa numa posição de poder a acumular
milhões impropriamente, enquanto as pessoas que dependem
dela morrem de fome?
Ora, há várias razões. Mas, o raciocínio fundamental é o seguinte:
quando temos de fazer uma escolha em que somente uma de
duas partes se beneficiará, pensamos – primeiro eu, depois o próximo.
Até aí, nada demais. É como diz o procedimento de emergência do
avião “coloque a máscara em si mesmo, para depois prestar ajuda”. Se
você estiver lutando pra não sufocar, como vai colocar a máscara no
seu filho? Querer coisas boas pra nós não é o problema. O problema é
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quando olhar só pra si vira um vício. É quando escolhemos beneficiar a
nós mesmos por hábito. É pensar que depois de mim vem eu de novo,
depois eu de novo e, em quarto lugar, o próximo.
E quem é esse tal de “próximo”, afinal? Excelente questão.
Esse tipo de raciocínio só é possível porque “o próximo” é um rosto em
branco. É um nome que você joga no google e não obtém nenhum resultado.
É uma pessoa da qual você pode falar mal em voz alta porque
ela nunca vai aparecer mesmo. Mas, o engano fundamental é deixar
de ver que “o próximo” somos nós.
Aquela senhora que esqueceu o cartão no caixa eletrônico e
quando foi buscar ele já não estava mais, somos nós, semana que vem.
Aquele carro que o vizinho esqueceu com vidro aberto e foi roubado, era o
nosso, mês passado. A bebida que eu deixei de pagar porque o garçom esqueceu
de pôr na conta, é a volta a mais que o táxi me dá na saída do bar.
Seria muita loucura pensar que o cartão da senhorinha podia
estar lá, quando ela voltasse?
Seria muito pensar em avisar o garçom
do erro, mesmo que já seja o terceiro na conta? Já parou pra pensar
que linda seria a cidade sem grades nos prédios?
Fica bem visível o ganho em termos de uma mente tranqüila
se eu não preciso me preocupar com alguém invadindo minha casa
no meio da noite. Mas, o que realmente separa uma pessoa de bem de
uma não-confiável não é uma grade, mas a honestidade.
Ser honesto é uma escolha. Ser honesto é estar no “Dharma”-
aquilo que deve ser feito por você para a manutenção da ordem e da
harmonia à sua volta. E o benefício nós podemos ver na hora – no
alívio da pessoa que havia perdido a carteira, no agradecimento do
colega de trabalho pra quem você apontou um erro importante, e na
sensação inegável de bem-estar em você, que fez a coisa certa.
Satyam > verdade
“Fale sempre a verdade”. Todo mundo um dia já ouviu isso da mãe, ou
do pai, ou da avó, ou de uma professora na escola.
Mas, é bem difícil ensinar uma criança a ter um valor pela
verdade se nem nós, adultos, sabemos exatamente por que, afinal de
contas, não devemos mentir. Alçar a “verdade” a um patamar máximo
de honradez e virtude não vai adiantar nada. Isso nunca vai bater o
benefício de uma mentira bem colocada. “Não minto porque é errado”
é muito bonito na retórica, mas fica muito mal na prática quando temos
de enfrentar uma multa ou a cara feia do patrão. Quando a corda
aperta, temos sempre uma mentirinha “branca” pra sacar da manga.
Pense o que cai melhor – dizer à sua amiga de cabelo crespo, a meia
hora da festa, que foi você que meteu a chapinha dela na tomada de
220w sem querer, ou dar uma de joão-sem-braço, tipo “já estava assim
quando eu cheguei”?
Mentir é mais fácil, não podemos negar. Mentir nos exime de
arcar com a responsabilidade por ter feito o que não deveríamos. Alivia
o nosso lado, evita desgastes que pensamos desnecessários. Mas,
o hábito de enganar o outro em nosso próprio benefício não acaba tão
bem quanto pensamos, por três pontos simples:
Primeiro porque, se formos fazer da mentira um hábito, é bom
que tenhamos boa memória pois em breve teremos contado tantas
que vai ficar difícil até colocar em ordem cronológica.
Segundo pois, realmente, não é muito respeitoso com a pessoa
com a qual estamos lidando. Afinal, certamente se a situação fosse invertida,
não gostaríamos que e outra pessoa estivesse mentindo pra nós.
E terceiro, e mais importante, é porque sabemos, no fundo,
que o que estamos fazendo não é correto. Na tradição do Yoga, uma
das definições da pessoa que zela pela verdade é que ela tem em consonância
pensamento, ato e palavra. Ela age e fala de acordo com o
que pensa. Quando mentimos e quebramos essa consonância, um
conflito é gerado dentro de nós. Às vezes ele é menor (“tô quase chegando…
mais 10 minutinhos, se o trânsito ajudar”) e às vezes é maior
(“calma, querida! aquela loira é só a minha prima!”). Claro que todos
nós procuramos levar a vida sem contar mentiras épicas. Mas as mentiras
pequenas acabam se empilhando uma na outra e criam um estado
mental que nos afasta a tranqüilidade. É uma sensação esquisita,
uma inquietude sem causa em particular, que não dá descanso. Nada
consciente. Mas está lá.
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Dizer a verdade requer mais maturidade e coragem do que
mentir, pois nos coloca frente a frente com situações que preferiríamos
evitar. Mas, são justamente essas ocasiões que nos fazem crescer
mentalmente, emocionalmente. Segundo o Yoga, zelar pela verdade
é dar mais um passo em direção a uma mente calma. Porque uma
mente calma é uma mente madura, uma mente consciente. Assumir
nossas responsabilidades é fundamental nesse processo. Não era isso
também que ouvíamos em casa – “Você não fez? Então, assume. ”?
Aparigraha > desapego
Quando pensamos num ser altamente espiritualizado faz mais sentido
imaginar essa pessoa no alto de uma montanha usando uns
trapos e meditando, ou dentro de uma banheira de hidromassagem
jogando videogame?
De alguma forma, em nossa percepção, o desapego aparece
como um sintoma de que a vida espiritual de uma pessoa foi adiante.
E isso realmente pode ser verdade. Desvendar o lado religioso e espiritual
normalmente põe em cheque o valor que damos paras as coisas.
Num grande mestre, isso fica muito nítido. É difícil pensar no Buddha
reclamando do discípulo que acabou de comer a última batata frita
ou no Dalai Lama correndo para ser o primeiro na fila da liquidação.
Mas, essa imagem, embora admirável, acaba gerando um abismo
entre nós e o desapego. Porque encaramos o modelo de um grande
mestre como um patamar inatingível, e dizemos a nós mesmos que
nunca vamos chegar lá. Parece haver um conflito entre a vida espiritual
e a vida “material”, ou seja, a vida que levamos normalmente – emprego,
casa, família, diversão, contas… Parece que se conquistarmos muitas
coisas na vida, necessariamente ficaremos presos a elas por meio do
apego e, por outro lado, parece que a outra opção – uma vida “desapegada”
– é comprar uma barraca, parar de tomar banho e passar a vender
cangas na praia. Mas esse conflito não precisa e nem deveria existir.
Todos nós somos desapegados em diversos momentos da
nossa vida e, na hora, parece a coisa mais natural do mundo. Só que
geralmente esse desapego se revela em alguma coisa com a qual não
damos a mínima. Quando você, meio sem fome, escolhe um tira-gosto
e o garçom solta o famoso “tem, mas acabou”, o que acontece? Você
nem pensa duas vezes, dá de ombros e escolhe outro prato ou até desiste
de comer. Desapego puro!
O que é mais interessante é que essa cena revela nossa maior
dificuldade em relação ao desapego – normalmente nós confundimos
“gostar e cuidar” e “apegar-se a”. Para nós, o nível de desapego com relação
a uma coisa ou pessoa é inversamente proporcional ao nível de
afeto que temos por ela. Quanto mais amamos, mais nos prendemos
ao que é amado.
Natural, não? Quem não gosta de ter sempre por perto a família
e os amigos? Quem não tem uma roupa preferida, um programa
predileto pra night, um filme favorito? Até aí tudo bem. Mas, pense por
um instante quantas dessas coisas poderiam pôr você numa pior se
você as perdesse. Parentes que se mudam, amigos que brigam, bichinhos
de estimação que passam dessa pra melhor… A lista pode ficar
bem grande, afinal a perda é parte da vida. E perda para nós é sofrimento.
Em última instância, então – por que gostamos, então sofremos?
É possível gostar e não ser apegado?
Considere a última vez em que que você recebeu flores. Quando
você as viu pela primeira vez, ficou encantado/a. Mas, em cinco dias
elas murcharam completamente e toda sua beleza desapareceu. Faz
sentido lutar contra o ciclo natural da vida?
Não importa o que venhamos a perder, a possibilidade de felicidade
não nos está negada. Porque ela não está fora, mas dentro de
nós. Realizar isso abre as portas do desapego.
Perder é parte da vida. Tudo que tem um começo, tem um fim.
O desapego não brota de um não-gostar, de ser indiferente. O desapego
floresce de um entendimento profundo do ciclo que rege o universo
inteiro. É tão fácil dizer “oi!”, por que é tão difícil dizer “adeus”? Se “o
futuro é uma astronave que tentamos pilotar”, como canta Toquinho,
o presente é uma estação espacial, cheia de possibilidades. Embarcamos
em diversas jornadas ao longo da vida, algumas vezes acompanhados,
outras vezes sozinhos. Encontramos e nos despedimos das
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pessoas diariamente sem saber se as veremos de novo, mas dizemos
“até logo” assumindo que o “logo” virá.
Desapego é liberdade. Pra você, que se harmoniza com o fluxo
natural da vida, e para as outras pessoas, que não têm o peso da responsabilidade
de estar sempre lá para fazê-lo feliz.
Brahmacarya > continência, restrição dawenergia sexual
Talvez este seja o valor mais mal-compreendido de toda essa pequena
lista. Normalmente traduz-se “Brahmacarya” como castidade ou celibato,
e se entendermos desta forma estaremos excluindo automaticamente
mais da metade da população do país da prática deste valor.
E, embora exista uma necessidade do praticante resguardar sua energia
sexual, precisamos colocar em contexto o termo que queremos
traduzir. O sânscrito não é uma língua simples e muitas palavras não
têm tradução em qualquer outro idioma, o que nos obriga a entender
o significado e o contexto no qual cada palavra é usada.
lembra que os Vedas propõem quatro “asramas”, quatro estágios
na vida de uma pessoa dentro do Sanata Dharma? O primeiro
deles é justamente “brahmacarya”, que vem a ser o período em que
uma criança mora com seu Guru, que a ensinará os rituais, as meditações,
o canto dos Vedas e seu significado. Durante este período,
que engloba parte da infância e da puberdade, é esperado do aluno a
dedicação total ao estudo e ao professor, não deixando espaço para
muitas interações sociais fora do “gurukulam” (o local do aprendizado).
Assim, o celibato é uma conseqüência natural deste asrama.
Outro fator a se considerar é que, na India, até mesmo nos dias de
hoje, a interação entre os sexos que não tenha como finalidade expressa
o matrimônio não é nada bem vista. Esse hábito que temos
aqui de nos relacionarmos com várias pessoas ao longo da vida não
existe por lá.
Assim, no nosso contexto, brahmacarya é uma seriedade
frente ao estudo e a nós mesmos, frente às outras pessoas e nossas
relações com elas. Não é necessário o celibato, portanto, mas uma relação
sadia com uma pessoa apenas. Há de se convir que, se as duas
qualidades mais prezadas pelo praticante de Yoga são a clareza e a
tranquilidade da mente, um relacionamento só já bastará para, de vez
em quando, abalar as estruturas emocionais de qualquer um. O que
dirá então, se ficarmos trocando de parceiros a cada semana ou ainda
nos relacionarmos com mais de uma pessoa de cada vez?
Brahmacarya é, portanto, a capacidade de continência da
nossa energia e do desejo sexual ligado a ela de modo que possamos
focar melhor no estudo e na prática.
Niyama
“restrição, observação”, são as atitudes que o praticante deve ter para
consigo mesmo, para regrar a mente e enfraquecer os complexo raga/
dvesa (gostos e aversões).
Santosa > contentamento
“A grama do vizinho é sempre mais verde” é o que ouvimos por aí e
na nossa experiência cotidiana parece que não só é mais verde como
mais forte, mais uniforme, florida e sem ervas daninhas. Quem nunca
economizou e depois gastou mais do que deveria numa jóia, num
carro ou num telefone que perdem metade da graça e do glamour
quando você os compara, involuntariamente ou não, com o de um
amigo? Não acontece sempre, é claro, mas todo mundo já experienciou
isso na vida em alguma medida, e não é nada arriscado dizer
que vai experienciar muitas vezes mais. Mas o que faz da casa do
vizinho parecer sempre mais espaçosa e bem decorada que a sua,
embora os apartamentos sejam idênticos? Por que você sempre descobre
algum detalhe “horroroso” em um trabalho que já foi refeito
duas dúzias de vezes?
O problema é um conflito entre o ideal e o real e, fundamentalmente,
a causa pela qual buscamos um ideal. Exemplo: quando
compramos um carro, compramos só um motor, quatro rodas e um
volante? Quer dizer, se a questão fosse zanzar de um lado pro outro,
qualquer calhambeque serviria, certo?
Mas, na realidade, quando
compramos um carro, além do “poder de locomoção”, digamos assim,
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estamos escolhendo levar no pacote algo que nos expresse, que diga
algo sobre nós. Ao dirigí-lo, como queremos parecer? Arrojados, despojados,
modernos… desejáveis? É assim que escolhemos um carro,
como um reflexo de quem somos. Ou melhor – como um reflexo do
que queríamos que as pessoas vissem em nós.
E é assim que vamos atrás de nossas conquistas, das nossas
aquisições “ideais”. Para preencher um desejo pessoal, sem dúvida, mas
também para mostrar aos outros quão grandes somos. Só nos esquecemos
de que os juízes mais duros não são os outros, mas nós mesmos.
Pense numa criança que sempre desejou ter um cachorro. Na
cabeça dela, aquele bichinho seria o companheiro ideal de todas as
horas. Sempre de bom humor, aquele cachorrinho fofinho com cara de
filhote estará lá para acompanhá-la para sempre.
Esse é o ideal.
E qual é a realidade? Por mais fofinho que seja o filhote, ele crescerá.
Por mais companheiro, vai ter seus dias de mau-humor. Ele pode
roer todos os móveis da casa, e escavar o seu único vaso de plantas.
A conclusão é “não compre um cachorro”? Claro que não. A
conclusão é que no mundo real, as coisas boas vêm misturadas com
as coisas ruins. Não existe ganho sem perda. O truque é olhar por cima
das perdas, coisa que fazemos facilmente (e automaticamente) quando
o ganho é muito evidente. Quem ama o cachorrinho que tem, dificilmente
vai reclamar de ter de tomar conta dele. Aceitamos que amor
é responsabilidade.
Assim são todas as coisas que obtemos. Podem parecer o
máximo e tudo de bom da primeira vez que as olhamos. Mas nada,
nada mesmo, é “tudo” de bom. Carros dão defeito, telefones são clonados,
namoradas ou maridos não nos entendem. É da natureza das
coisas serem “imperfeitas”. O que faz de uma coisa “perfeita” é o seu
olhar sobre ela.
A chave do contentamento é olhar para o que temos com
bondade. É estar satisfeito com o que se tem, justamente porque se
tem, não deixando que nossa insegurança faça ressaltar os pontos negativos
daquilo que possuímos. Um passo nessa direção é reconhecer
nas nossas coisas as qualidades que queríamos que os outros reconhecessem.
A nossa opinião em relação ao que temos vale mais que a
de qualquer outra pessoa. Um milionário que acha que é um mendigo
vai continuar agindo como um mendigo por mais que cem pessoas
digam que ele tem 10 milhões no banco.
Por que achamos que uma coisa é bela somente em comparação
com outra? Mas como você pode, realmente, comparar um girassol
com outro? Ou mesmo com uma rosa? São flores, todos temos
algumas e deveríamos ser gratos por isso. Contentamento é poder admirar
as flores dos outros sem deixar de apreciar a cor e o perfume das
nossas. É uma atitude positiva em relação à vida, que deixa a mente
mais clara e livre de confusão.
Saucam > pureza
A pureza normalmente é um qualidade da qual só os cavaleiros paladinos
ou os santos são dignos. Se tentamos trazer pra algo mais próximo
de nós, vemos que o conceito normalmente está ligado a uma figura
idealizada como Gandhi ou Madre Teresa. Fica no ar uma espécie
de suprema bondade, honestidade, desapego… um altíssimo patamar
de santidade ao qual raros mortais têm acesso.
Ok, vamos então pegar o elevador e tentar trazer a coisa mais
aqui pro nível do play.
Não podemos esquecer de que estamos falando aqui dos
princípios básicos que o praticante deve cultivar, se deseja ter uma
certa propensão à prática de Yoga. Então, a pureza que nos interessa,
a princípio, é a pureza de mente. E não é algo muito simples de se
conseguir, infelizmente.
O normal é ter na cabeça uma mistura de pensamentos puros
e outros não tão puros assim. Pensamos em ajudar o mendigo
na rua, dar um trocadinho, e no minuto seguinte pode vir a idéia de
que ele pode nos fazer algum mal. Sejamos francos, pode até não ser
uma coisa muito comendável, mas é assim que a banda toca. E assim
deve ser. Que problema tem, afinal, fantasiar o colega insuportável
do trabalho de repente perdendo a voz?
Nenhum, é claro. A não ser
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que você faça desse pensamento um hábito. Como já deu pra perceber
neste ponto, em termos de mente o hábito é o problema. Já reparou
que, quanto mais freqüentemente uma criança apronta, mais e
mais refinada fica a travessura? Ou, num contraponto, quanto mais
um músico trabalha, mais rebuscada fica a sua arte? Assim é. Diz um
texto antiquíssimo da tradição Yogue “aquilo em que meditas, isto
é o que te tornarás”.
Portanto, o ponto central da “pureza” interna não tem a ver
com o teor do pensamento em si, mas com freqüência com a qual a
nossa mente caminha numa direção construtiva. Pureza, pra nós, portanto,
fica sendo uma propensão, uma tendência a levar a sua mente
para um caminho construtivo.
Não cabe aqui ficar se culpando por pensar nisso ou naquilo,
então. Não temos a menor escolha sobre o que vai aparecer na nossa
mente daqui a dois segundos. Se não fosse assim, você não teria que
aturar aquela musiquinha chata toda vida, que parece grudar no seu
cérebro dia após dia. Você lá, tentando fazer uma prova, e seus neurônios
só querendo saber de “candy crush saga” (ô jogo maldito!). Se alguém
disser a você “faça tudo, mas não pense de jeito nenhum num
elefante rosa!” no que você vai pensar? Não vá nos culpar, aliás, se nos
próximos dois dias de vez em quando vier à sua cabeça um elefantinho.
Como dissemos – a mente é imprevisível!
Comecemos admitindo, então, que não podemos controlar
nossa própria mente. Mas, a bem da verdade, nem é o que queremos.
Ninguém pode ficar de guarda 24h por dia, sete dias por semana. Se
fosse uma questão de controle, isso implicaria em estar eternamente
vigilante. O truque aqui é “direcionar”, conduzir a mente por um caminho
construtivo até que ela pegue o embalo e vá sozinha.
Nossa mente é como um lago. Mesmo durante uma chuva
forte, que torna impossível ver o fundo, podemos ter certeza de que lá
embaixo a água está calma. Assim, a natureza da mente é o silêncio.
Então, por mais que você sinta sua mente permanentemente como
um ensaio do Monobloco, pode ter certeza de que, logo ali atrás, estão
o silêncio e a paz. Mas, quanto mais cultivamos pensamentos turbulentos,
mais ficará difícil pra nós realizarmos isso.
Em outras palavras,
a mente em si já é pura. Nós é que temos dificuldade de perceber isso.
Faça um teste. Sente um pouco de olhos fechados e observe
os pensamentos. O que parece, a princípio, uma torrente, um fluxo, é
na verdade uma sucessão – um pensamento toma o lugar do anterior.
Mas, todos eles têm começo, meio e fim. Depois vem outro. E outro.
Entre eles, note o intervalo. O intervalo é puro silêncio.
Se é assim, tudo que precisa ser feito é evitar de dar corda para
o pensamento não-construtivo e assim evitar a torrente de imagens,
idéias, sons, lembranças e sentimentos que vêm a reboque desse pensamento
inicial. É claro que nem sempre conseguiremos.
Existem dias
e dias, e com certeza, alguns pensamentos são mais fortes que outros.
Mas acredite – podemos ensinar à nossa própria mente quais são os
pensamentos que nos são favoráveis e os que não são. Com o tempo,
com a prática, podemos eliminar algumas tendências que antes considerávamos
parte do que somos. Uma pessoa que achamos “muito
negativa” pode sim tornar-se positiva. Aprender a ver a vida de outra
forma é mudar nossa própria realidade. Cultivar a pureza na mente, é
ir em direção à nossa própria natureza.
Isvara pranidhana > entendimento e entrega a Isvara
Falar sobre Isvara acaba deixando a maior parte das pessoas desconfortável,
pois é uma palavra freqüentemente traduzida como “Deus”.
E embora seja socialmente aceito perguntar se você acredita ou não
em Deus, perguntar o por quê, ou como Ele (ou Ela) é, gera uma certa
aflição. Isso acontece porque não costumamos ter uma idéia bem
definida do quê ou quem seja Deus. Como Ele atua sobre o mundo?
Existe um destino já traçado pra nós? E, pra começo de conversa, Ele
sequer existe?
Essas e outras considerações podem até passar longe da nossa
cabeça num dia normal. Afinal, se você gastar seu tempo pensando
nisso não vai notar o chefe olhando de cara feia pra você que está ali,
viajandão. O dia comum passa correndo e tudo está, mais ou menos,
em seu devido lugar.
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Mas… e num dia não-normal? E quando as coisas estão de
cabeça pra baixo? E quando nos aflige a sensação de que estão despejando
em cima de nós mais do que achamos que podemos lidar?
Como quando descobrimos uma doença grave. Ou quando um parente
ou amigo querido se vai de repente, assim, sem aviso. Ou quando
o avião entra numa “pequena turbulência”, que deixa até a aeromoça
em pânico. Aí a coisa começa a mudar um pouco de figura.
Quando olhamos pra nós mesmos como realmente achamos
que somos – vulneráveis, transitórios e limitados – começamos a imaginar
se há algo que não seja assim.
Começamos a imaginar o que há
além dessa realidade que não podemos tocar com nossos sentidos.
Perguntas importantes são feitas: “o que há depois da morte?”, “por
que ninguém volta de lá?”, “por que isso foi acontecer justamente comigo?”…
Que sentido há nisso tudo, na vida?
Existe, afinal, alguma justiça
na morte, na dor, nas coisas ruins que nos acontecem?
Tendo em mente o conceito de “Isvara” que foi brevemente resumido
na introdução, vamos explorar um pouco melhor essa idéia de
Unidade do cosmos.
Para entender como isso funciona, pense por um
instante em como você encara sua relação com o mundo. Normalmente,
funciona assim – de um lado você, como ser individual, com suas opiniões,
experiências, sentimentos e etc, e do outro o mundo lá fora. Mas
você já parou pra pensar onde você termina e onde o resto do mundo
começa? Só porque você pode distinguir os limites do seu corpo, não significa
que ele é realmente separado do resto!
Afinal, ele é feito dos mesmos
5 elementos que, combinados, dão origem à criação inteira. Espaço,
ar, fogo, água e terra são princípios básicos que compõem todos os organismos,
desde os mais simples (como um vírus) até os mais complexos
(como nós), e, basicamente, tudo que há no universo – desde uma pequena
pedrinha, até uma estrela imensa. Então, se compartilhamos das
mesmas origens, se somos não-separados, quando você fala em “você”
e “o mundo”, está sendo redundante. Você está contido/a no mundo e
interage constantemente com ele.
Ninguém é, de fato, uma ilha.
Esse mundo – na verdade, esse universo inteiro – funciona
como um grande organismo que é regido por leis. Na escala micro,
considere o seu corpo. Você, que se acha tão único, na verdade é uma
congregação de trilhões de células trabalhando em harmonia e consonância.
Existe uma “Grande Ordem” que age no seu corpo fazendo
com que todas as células, tecidos, órgãos e sistemas trabalhem assim.
Se olharmos agora para o macrocosmo, veremos que o universo das
coisas gigantes funciona assim também.
No seu corpo são células e
sangue, no espaço são planetas e a força da gravidade. Diz um princípio
antigo aplicado à astrologia “assim em cima, como embaixo”. O
micro e o macrocosmo estão ligados. Ligados pelo quê? Pela lei divina
– Isvara, aquilo que permite que as coisas sejam como são.
A entrega a Isvara não é, como se poderia pensar, entrar num
mosteiro, virar freira ou viver de vender bíblias na rua. A verdadeira
entrega é reconhecer seu lugar no cosmo, seu papel nele e realizar que
existe uma ordem por trás de tudo que zela pela vida e pela harmonia.
Uma famosa revista uma vez publicou uma matéria dizendo que existem
milhões de micro-organismos que poderiam nos infectar e que
se eles sofressem mutações numa constância razoável, estaríamos
todos condenados a morrer de uma variação de gripe (tipo a aviaria,
suína, etc). E, mesmo assim… contra todas as chances… Estamos aqui.
Parece pouco. Parece bobeira. Mas nada, nada mesmo, pode
rivalizar com o poder de compreender e aceitar completamente como
a criação funciona. Aceitar que cada coisa tem seu lugar. Que sem a
morte não há vida, pois sem destruição não há transformação. Não
existe crescimento sem mudança, e a mudança abala nossas estruturas
gerando sofrimento.
O sofrimento é parte da vida. E a nossa vida
faz parte da vida do universo inteiro. A entrega a Isvara é a confiança
de que existe algo por trás dessa vida – alimentando-a, protegendo-a,
fazendo-a florescer. O mesmo “algo” que faz isso pelo universo inteiro.
Realizar isso vai eliminar a tristeza? Vai nos tornar indiferentes
ao sofrimento (nosso e dos outros)? Não e nem deveria. As emoções
têm seu lugar e existem para serem sentidas. Mas com certeza
vai diminuir o baque de uma notícia ruim. Vai amortecer a violência
com a qual nossas reações lidam com o desastre, com o colapso, com
o desconhecido. Vai modificar nossa estrutura interna e fazer da nossa
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mente um rio, cujo curso de água acomoda todos os obstáculos que
encontra pelo caminho – reconhecendo a presença, cedendo espaço,
mas seguindo seu rumo sem maiores complicações.
Tapas > disciplina, esforço
Como Patañjali dirá no capítulo dois de seu Yoga sutra, a prática
se apóia e dois pilares – desapego e disciplina. E este último é o
valor que sustenta todo o nosso esforço.
De que adianta devolver o troco a mais no bar da esquina, se
no dia seguinte embolsamos o dinheiro que uma senhora deixou cair
ao sair do banco? Como fazemos para não jogar o cachorro em cima
do flanelinha, quando ele vem nos achacar todo santo dia quando saímos
do trabalho? Como resistir, dia sim, dia não, à tentação de resolver
um potencial conflito com uma mentirinha branca?
Não é nada fácil, com certeza. Na verdade, às vezes é tão difícil
que parece que estamos agindo contra nossa própria natureza.
Por impulso, parece que sempre agiremos da maneira mais fácil pra
nós, do modo que nos trará o benefício mais imediato. E, às vezes,
nem nós mesmos entendemos direito porque fizemos tal coisa e
deixamos de fazer outra. Por que cargas temos essas tendências em
primeiro lugar?
Na tradição do Yoga isso tem uma explicação muito simples –
o conceito de vasana ou samskara.
Vasana é uma palavra que significa “impressões deixadas na
mente por ações passadas corretas ou incorretas”. Funciona mais ou
menos como um curso de água. Se ele está apenas começando a cruzar
uma superfície, seu percurso é incerto e não podemos prever pra
onde a água irá correr. Mas, dado certo tempo, um caminho começa
a se desenhar, e um padrão aparece. Como sabemos, devido à força
do curso da água, depois de muitos anos podemos ter canais, rios, ou
mesmo cânions.
Pois bem, com a nossa mente funciona da mesma maneira.
Quando adquirimos um hábito novo, quanto mais ele for repetido,
mais fundo ele ficará gravado no nosso comportamento formando
um padrão. É bem fácil ver isso no hábito de fumar, por exemplo. A
pessoa pede uma xícara de café e quando se dá conta já apareceu um
cigarrinho aceso em sua mão. E, embora o hábito de fumar não seja
lá muito saudável, os focos mais preocupantes das vasanas são nossos
traços negativos de personalidade. São aquelas reações automáticas
a certas situações das quais nos arrependemos depois. Quando
olhamos pra trás, pensamos “Puxa, realmente, que papelão! Como fui
fazer isso de novo?”. “Automatismo” é a palavra chave aqui. Essas reações
acontecem independentemente da nossa vontade.
Sempre sem perceber, algumas pessoas ficam na defensiva
toda vez que são confrontadas com o assunto “dinheiro”. Outras,
têm o hábito de zombar de todos à sua volta para que ela se sinta
superior; outras reagem violentamente à qualquer divergência de
opinião, e ainda outras deixam de lado as amizades quando uma
alguma forma de competição aparece (num jogo, por exemplo). A
lista é infinita. O verdadeiro desafio consiste em, primeiro, identificar
esses padrões em nós mesmos (ou aceitar a opinião de alguém
confiável). E segundo, tomar providências para que ele não se repita
mais tão facilmente. Como? Compreendendo a causa e adotando
um valor que o possa combater.
Na Tradição é dito que trazemos “vasanas” de outras vidas, o
que faz de nossos hábitos ruins coisas muito firmes. Então o trabalho
não é nada fácil. Seja como for, vindo de outras vidas, da nossa educação
ou do ambiente em que vivemos, nossos hábitos negativos estão
profundamente enraizados em nós. Mudá-los vai requerer muito
trabalho e atenção. Nenhuma conquista duradoura acontece da noite
para o dia, e é aí que entra a disciplina. Podemos ter um exemplo pelo
nosso corpo, que é algo grosseiro e reage a medicamentos, exercícios,
massagens, etc. Mesmo ele não conseguimos modificar da noite pro
dia. Que dirá, então, da nossa mente, que é muito mais sutil e sofreu
com esse padrão negativo durante anos a fio. Precisamos, então, dos
valores para modificar o nosso comportamento e, ao fazê-lo, modificar
o mundo à nossa volta de maneira construtiva. Mas isso exige força de
vontade, perseverança e auto-esforço, ou seja – disciplina.
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A não-violência combate a agressão. A verdade anula a inverdade.
A honestidade evita a injustiça. Mas se não estivermos atentos
aos nossos atos e dispostos a mudá-los quando necessário, não há
milagre que nos salve. Essa atitude de recorrer a um valor oposto a
um comportamento negativo também é recomendada nos sutras e
recebe o nome de “Pratipaksa Bhavana”.
A disciplina é uma ferramenta para conseguirmos o que desejamos.
É a nossa vontade saindo do nível mais sutil (o pensamento),
para alterar o nível mais grosseiro (a matéria). Começar algo exige
força, sem dúvida, mas perseverar exige ainda mais. Por mais que
toda jornada comece sempre com o primeiro passo, é preciso ter gás
pra dar muitos mais. Tenha em foco seu objetivo, meça seus esforços
com as suas capacidades e, com certeza, mais cedo ou mais tarde, você
conseguirá apagar um hábito negativo colocando um positivo em seu
lugar. E, com certeza, se surpreenderá com como a alteração em você
se reflete no mundo à sua volta.
Svadhyaya > auto-estudo
Como vimos, quanto mais forte forem as impressões mentais dos hábitos
(vasanas), mais difícil pra nós mudar o comportamento ligado a
elas. A disciplina é o meio para substituir um mau hábito por um bom.
Mas só é possível aplicar disciplina quando identificamos o problema
e isso só será possível através do auto-estudo.
O auto-estudo é uma auto-análise, um olhar contemplativo
sobre si mesmo. É uma observação honesta e sincera de determinado
hábito ou curso de ação – de um padrão que se repete e que já criou
problemas. Não é nada fácil, realmente.
Nos passos preliminares do Yoga, grande ênfase é dada à auto
-análise. Ela pode não ser tão profunda no que diz respeito a descobrir
razões inconscientes, curar traumas, etc. Mas não importa. Um psicólogo
pode ajudar, por que não? Cada um deve usar os meios que estiverem
disponíveis para conhecer-se melhor. O ponto é que onde podemos
agir – que é onde os padrões se tornam claros para nós – ao olhar pra
dentro honestamente, você reconhecerá características que não gostaria
de ter. Quem, afinal, gostaria de se descobrir raivoso? Ou impaciente?
Inveja, então, é um traço negativo que muito poucos admitem ter. E,
no entanto, embora essas características nos pareçam tão detestáveis,
elas podem estar lá, em maior ou menor grau. O que fazer?
Tome a raiva, por exemplo. Seus amigos podem até discordar,
mas, primeiro ponto – você não tem culpa de ser assim. Muitos fatores
contribuíram para você ser exatamente como é hoje. Aceite a raiva
como uma peça desse mosaico único que é a sua personalidade. É
uma peça que queremos substituir, é verdade. Mas, enquanto ela está
lá, não adianta fingir que não viu. É melhor aceitar e acomodar.
Acomodar um sentimento ruim não é muito fácil. Ajuda se
pudermos pensar a coisa de uma outra forma. Tomemos novamente
a raiva como exemplo. Existe um texto budista que diz mais ou menos
assim “Quando uma pessoa, tomada pela raiva, agride você com um
pedaço de pau, de quem é a culpa – do pedaço de pau, da pessoa que o
empunha, ou da raiva que controla a pessoa?” Se é o sentimento, o padrão
emocional que toma o controle naquele momento, não há muito
a ser feito. Não é muito construtivo ficar com raiva da raiva!
Aceitando e acomodando aquilo que nós consideramos muito
ruim e indesejável dentro de nós, admitindo verdadeiramente que
não somos perfeitos, nós nos damos a capacidade de agir. E então, agimos.
Quando não estamos no calor da situação, podemos nos aplicar
em fazer as coisas de maneira diferente. Como dissemos, a Tradição
aponta que o que combate um comportamento nocivo é o seu direto
oposto. Então, se somos raivosos, numa pequena situação de irritação
nos esforçamos para fazer um elogio em vez de agredir. Se somos
avaros, nos esforçamos para doar. Se somos invejosos, tentamos nos
deixar contagiar pela felicidade da pessoa que acaba de nos contar
sua boa sorte.
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