quarta-feira, 27 de maio de 2020

Quando usamos a palavra "espiritual", não deveria haver qualquer noção fantasiosa sobre ela.

Quando usamos a palavra "espiritual", não deveria haver qualquer noção fantasiosa sobre ela. Ela não significa algo distanciado da vida, aberto a diferentes interpretações por mentes diferentes. Refere-se a algo que existe de forma absoluta. Pode-se saber do que se trata apenas através das qualidades que manifesta. Para obter a verdadeira compreensão de algo, será necessário olhar para os fatos envolvidos, evitando ideias que são meras projeções a partir de uma base de ignorância.
Para tomarmos outro exemplo, aquela natureza que pode ser chamada espiritual sempre tem presente em si o atributo de uma sensibilidade extrema, uma inteligência que responde imediatamente ao mais leve toque. Embora esta resposta pareça automática, ela surge de uma percepção da verdade com relação ao que quer que a toque, portanto, esta resposta é determinada por aquela verdade. É a resposta de uma natureza que é susceptível, porém não influenciada. Ela não se entrega indistintamente a qualquer coisa e nunca se deixa dominar; mas também não se diminui ou foge de qualquer coisa que atravesse o seu caminho - que seria o oposto da "entrega" - ela mantém a sua liberdade e equilíbrio.
A verdade no interior da pessoa significa que há sempre ação livre, não forçada, oriunda da própria inteligência e da vontade livre, isto é, sem jamais envolver-se ou estar sujeita a forças que obrigam ou determinam as ações da pessoa. Se a pessoa fosse incitada a um curso de ação, ou até mesmo influenciada por adulações abertas ou sutis, por ameaça ou pressão, por alguma espécie de engodo, isto seria uma ação produzida, não livre. A natureza do Espírito ou a natureza espiritual permanece sempre livre.
Se todo pensamento e todo sentimento se originarem de um estado interior
em que nenhuma influência externa perturbe-os ou modifique-os, então é realmente um estado de encontrar-se só, porém não em alheamento ou solidão. Mesmo esta condição de encontrar-se só, na qual a natureza que está tão só mantém a sua pureza e integridade originais, é compatível com relações íntimas e profundas. É como a relação entre os raios do sol que incidem em um objeto, talvez interpenetrando-o, e o próprio objeto em si. A intimidade surge da natureza de sua percepção e resposta. O contato íntimo e uma relação que penetra a natureza interna do outro, por um lado, e o encontrar-se só e a pureza, por outro, parecem incompatíveis. Contudo, estão igualmente presentes enquanto qualidade ou capacidade naquela natureza, que pode ser verdadeiramente descrita como espiritual.
Krishnaji fala de uma natureza da mente e do coração que é vulnerável, à qual refere-se como sendo sensível ao toque mais leve, não opondo qualquer resistência. Ela é sintonizada de uma forma tão bela que responde a cada vibração e de nada impede a entrada. Poderíamos pensar que, neste caso, em breve, desgastar-se-á ou se confundirá com impulsos contrários. Mas como não há resistência, toda onda que surge a atravessa e nunca é detida. A eletricidade, até mesmo nas voltagens mais elevadas, não afeta o seu meio-condutor se não houver qualquer resistência. Se alguém for ferido ou ofendido por alguma coisa que aconteça ou por alguma observação que lhe seja feita, ou a seu respeito, é porque existe nele um eu que resiste e ressente-se. Mas é possível chegar a uma condição interna em que a pessoa não é ferida de modo algum. Ela então será tanto vulnerável como invulnerável, por mais paradoxal que isto possa parecer. Aquilo que imaginamos ser o eu, o eu próprio, é um sentimento sombrio e difuso, difícil de localizar, que surge de uma condição de estar encerrado, de encontrar-se em um invólucro, no qual todas as reações estão confinadas e que, portanto, permanecem existindo, na maior parte, de forma subconsciente, submetendo-se a permutações e combinações. O fato de que isto ocorre pode ser compreendido por qualquer um de nós, desde que se observe a si mesmo cuidadosamente. Este eu é uma entidade ilusória, que guarda muitas forças de naturezas variadas e contrárias e dá origem ao jogo de opostos. Ela divide uma natureza, que do contrário seria homogênea, em seções que variam reciprocamente.
Gità descreve uma estrutura da mente, um estado de espírito, que não é
assim dividido e que é "igual em relação a amigo e inimigo", "o mesmo na honra ou na desonra", "entre o êxito ou o fracasso". Comumente, quando encontramos o êxito, prosseguimos alegremente e ficamos exultantes e felizes, mas, quando encontramos problemas e derrotas, ficamos acabrunhados e deprimidos. No entanto, pode-se estar num estado de equilíbrio, que se origina da pura simplicidade de aceitar o que quer que seja e em fazer o que vale a pena ser feito em qualquer circunstância. É um estado da mente e do coração de extraordinária beleza, o que encara as coisas desta maneira. Esta equanimidade ou igualdade de espírito é descrita pelo Gità como "Yoga" - na verdadeira acepção da palavra um estado unificado, E é este estado unificado que é o estado verdadeiramente natural
em que a unidade do Espírito obtém e manifesta suas potencialidades e harmonia.
Vemos diferenças em toda a parte na natureza. As diferenças que existem na
natureza das coisas no campo da matéria são refletidas no campo da mente e das emoções e ali geram reações, enquanto ainda se encontram em um estado de inconsciência. O Gità fala da liberdade dessas reações que são prazeres e desprazeres, paixões, avidez, ódio e inveja. Quando as reações cessam de existir, há um espírito de igualdade no coração das pessoas, boa-vontade comum, preocupação e consideração em relação a todos, o elevado e o usual, o simples e o erudito e assim por diante. A natureza em que se manifesta esta mesma atitude é a natureza verdadeiramente espiritual.
O homem espiritual pode possuir o conhecimento tanto da ciência como do
ocultismo (este último também é uma ciência), mas ele carregará este conhecimento suavemente como se existisse e ao mesmo tempo não existisse. Assim, no seu caso, o conhecimento co-existirá com a inocência. Ele poderá falar com uma criança de maneira que a interessa e a orienta, e nesta relação com a criança ele estará tão à vontade como em qualquer tipo de troca com outras pessoas mais eruditas e experientes. Isto é assim porque ele possui um coração de criança que não é suprimido pelo seu conhecimento. Ele também terá um conhecimento da natureza humana com tudo que é bom e ruim nela, o feio e o belo; porém, conhecendo tudo isso, será capaz de amar o homem em sua benevolência. O conhecimento do mundo com todos os elementos desagradáveis nos homens, a impolidez, a corrupção, as tentações oferecidas e aceitas e acima de tudo a brutalidade, poderiam parecer incompatíveis com o amor que se associaria a um coração puro e inocente. Contudo, pode haver tal amor juntamente com o conhecimento, e é a natureza na qual ele reina supremo que é a natureza espiritual. É uma natureza que responde à verdade em tudo, ou, para usar outra palavra, que neste contexto é sinônimo de verdade, à beleza nelas inerente. A resposta mais natural àquilo que é belo, não apenas à beleza exterior de uma pessoa, mas também à beleza interior, à luz nela oculta, é o amor. Quando se reage ao vulgar, como muitas pessoas parecem fazer atualmente, quando a resposta está com os impulsos físicos de luxúria, também acentuados na atualidade, essa é a resposta do eu. A resposta pura é de uma natureza diferente, que é uma natureza de auto-negação.
Em um estado de negação absoluta na própria pessoa, que é a negação do eu, a ação que se instala surge livremente, a partir da verdade que então se manifesta em lugar do eu. A sua ação é como aquela do artista perfeito que conhece instintivamente por onde traçar as linhas. Da mesma maneira sabe-se então aquilo que está certo e aquilo que não está; a pessoa expressará em seu trabalho uma disciplina natural inata que consiste em evitar aquilo que é grosseiro ou prejudicial, aquilo que é desproporcional ou não belo. A partir do estado de negação surge uma energia positiva que possui grande inteligência ou sentido inato. É a energia do "Eu Uno" do pensamento filosófico indiano. Aquele Eu Uno está só porque não tem outro a acompanhá-lo. Estando só, está sempre puro e não afetado por
qualquer coisa que possa surgir e com ele estabelecer contato. Na natureza daquele Eu ou a natureza do estado negativo, não há divisão, nenhum conflito. Por não ser afetado, está para sempre isento das contrariedades e desequilíbrios dos opostos. Contudo, age sempre baseado em mil e uma maneiras, a partir de sua própria liberdade, porém sempre de tal forma que nunca perde aquela liberdade - e este é o caminho certo e o caminho perfeito.
Pode parecer paradoxal que um estado de liberdade possa conter dentro de si
o segredo da correção absoluta, bem como a perfeição. Isto ocorre assim porque compreendemos a liberdade em um sentido que não é liberdade real, uma condição que não está sujeita à atração ou a repulsão. Nesta condição, a ação está de acordo com uma lei inata que em um indivíduo é a lei do seu ser. É uma lei que, entre os componentes daquele ser, sempre mantém um estado de harmonia. O nosso conceito de perfeição também incorpora, de forma consciente ou inconsciente, essa harmonia que é a manifestação de uma unidade na diversidade.

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