quinta-feira, 4 de junho de 2020

ATENÇÃO, INTERESSE E AMOR sri ram

ATENÇÃO, INTERESSE E AMOR

Quanto mais se observa a natureza humana em seus diferentes aspectos, as mudanças por que passa, e os seus diferentes modos de agir, mais se compreende que a transformação mais maravilhosa que pode vir para uma pessoa apenas poderá concretizar-se através do amor, mas terá que ser um amor em que não há elemento de posse ou de busca por si mesmo. Se tal amor estiver presente, todas as outras virtudes e graças ou virão ou provar-se-ão nele incluídas; e este amor regenera as pessoas desde as raízes do ser, como nenhuma outra força pode fazê-lo. A questão importante que então se apresenta é - mais importante do que possa inicialmente configurar-se, especialmente quando a palavra "amor" é usada de forma aleatória e em sentidos diferentes - : o que é o amor em sua verdadeira natureza, distinto de qualquer imagem à qual o termo possa ser aplicado; e também, como se chega até ele, se ele não existir dentro da pessoa? O amor não é um mero gostar. O que o amor é, em verdade, não pode ser decidido através do pensamento, através do raciocínio baseado em quaisquer premissas conhecidas; e, se aquilo que imaginamos ser o amor existe por determinada razão ou em consequência de algum motivo presente em nossas mentes, então, não se trata do verdade ira amor, que terá de surgir livremente, por si mesmo, não estando suscetível a qualquer processo de coersão ou de indução, empregado pela própria pessoa ou por outros.
Quando urna pessoa está amando, ela tem um interesse profundo e intenso no objeto de seu amor. Portanto, será que pode ser argumentado que onde há interesse haverá amor? O interesse poderá surgir a partir de vários motivos. Pode significar a busca de proveito, poder ou prazer, quando estaria funcionando de maneira contrária ao amor, e estes motivos podem sutilmente funcionar desapercebidos. Mas, se for interesse sem qualquer motivação do eu, sem apego ao prazer através dele experimentado, então estes interesse e amor puros naturalmente coexistiriam e, mais do que isto, tornar-se-iam unidos e misturar-se- iam.
Quando não for percebido interesse algum, seja em um objeto, uma atividade ou uma pessoa, forçar-se a estar interessado será vão. Um menino que é forçado a ler alguma coisa que não lhe interessa, poderá tentar fazê-lo sem vontade em virtude da pressão ou do medo, mas o seu interesse residiria apenas na ansiedade de ultrapassar os mais velhos ou de estar com eles, e não de fato naquilo que deve ler ou aprender. Novamente há a questão de como o interesse em uma atividade ou em um objeto pode ser desperto, percebido pelo que em si significa sem nenhum objetivo ulterior; um interesse genuíno, espontâneo e puro.
É óbvio que, ou por estar interessado ou por amor, primeiramente terá de existir a base de um contato psicológico, não vago e superficial, porém direto e íntimo, capaz, por assim dizer, de acender urna centelha. Este contato terá de ter uma realidade e uma eficácia que não desviem nem passem ao largo do objeto da
atenção, ele deve penetrar em sua natureza e tornar possível uma resposta profunda em relação ao objeto. A atenção que é dada terá de ser suficientemente pronunciada em seu impulso, e terá de surgir de uma natureza de sensibilidade na área do próprio ser - quando não é a totalidade dele - envolvido naquele ato. Sem atenção, não estamos alertas àquilo que se realiza, e não percebemos nem mesmo o que está diante de nós.
Quando houver atenção, ela poderá abranger o todo do objeto, compreendendo todas as suas partes, ou poderá concentrar-se em alguma parte ou ponto do objeto. Dar atenção significa estar consciente da presença, e conhecer a natureza da coisa que é o objeto, na medida em que a sua natureza pode ser conhecida por percepção direta e não através da razão ou da inferência. Tal percepção é da própria natureza da consciência. Se uma consciência individual é concebida como capaz de existir separada do cérebro físico e dos órgãos sensoriais, a natureza de sua ação dependeria do grau do seu desenvolvimento, de sua sensibilidade, percepção do belo e outras qualidades, sendo esta consciência muito similar a uma lente que pode variar bastante em sua potência. Mas seja qual for a sua capacidade, não há necessidade de um esforço especial para expressar a própria natureza. Esforço, tensão e cansaço existem apenas para o meio material. Quando aquela consciência estiver plenamente desperta e atuar com a sua capacidade inerente, haverá atenção plena ou total, e esta atenção, por sua vez, pode revelar muitos fatos com relação a todas as coisas que a rodeiam, não percebidas anteriormente, bem como profundezas ocultas nela mesma. Nesta atenção ou ação não há divisão da consciência em duas seções, uma sendo a própria ação, e a outra, subjacente àquela ação, um eu formado por experiência prévia, dirigindo, impulsionando ou inibindo, conforme possa atender às suas finalidades.
Atenção, interesse e amor são todas palavras-chave que significam uma grande abrangência de ações que existem no momento que denominamos o presente, e revela maravilhosos novos significados que existem até mesmo nas coisas que parecem lugares-comuns; elas constituem, em diferentes graus, uma luz que emana da natureza da consciência. Dar atenção significa lançar os raios desta luz. Esta luz poderá na maioria das vezes recair sobre a superfície e ser refletida a partir dela. Mesmo assim, ela revela a natureza daquela superfície, isto é, o aspecto externo das coisas. Mas podem existir outros raios mais penetrantes. Quando há amor, ele ilumina a natureza interna do objeto de amor, revelando a amabilidade nela oculta, à semelhança da bela estátua dentro do bloco de mármore que o escultor, se for um gênio, percebe antes de libertar. Porém, o poder de ver esta beleza e a ela responder manifesta-se apenas na medida em que a própria consciência libera-se das ingerências de um eu que muda o seu caráter, porque este eu se configura como um centro que puxa ou empurra vários pontos ao seu redor, afastando-os ou aproximando-os de si, e distorce as atividades daquela consciência durante o período em que não está desperta. Ou, para usarmos um outro símile igualmente aplicável, a consciência individual terá que desprender-se completamente do sedimento acumulado de experiências passadas as quais, carregadas em suas águas límpidas, que do contrário estariam livres e fluidas, mudam sua qualidade e natureza, impedindo seu fluxo e
impondo-lhes as suas próprias reações e propriedades que, em linguagem simples, são a ambição, a inveja e assim por diante.
A vida, energia ímpar, quando não estiver oprimida ou degradada de alguma maneira, expressa a sua natureza verdadeira e mais profunda com espontaneidade absoluta. Isto é experimentado no campo da consciência humana enquanto ação, a cada momento vinculada ao momento precedente não através de uma continuidade ou automatismo mecânico inexpressivo, porém através de percepção, inteligência e razão renovadas. Tal espontaneidade, manifestando estas qualidades, apenas pode surgir de uma condição na qual a consciência individual não está afetada por nenhum impedimento interno, ou seja, nada contém em si que possa classificar ou obstruir a sua livre ação. Nisso nada deve haver que modifique a sua ação ou decisão, exceto uma inteligência pura ou qualquer sentido inato como um sentido de harmonia que possa existir na natureza intrínseca da vida e da consciência, as quais são de fato dois aspectos de uma mesma realidade. É uma condição puramente negativa e pode coexistir com um estado de alerta pronto para a ação. Sejam quais forem as formas positivas de ação que dela possam surgir, surgirão espontaneamente, em harmonia ou unidade completa com aquela base negativa, não restringindo a sua liberdade ou modificando o seu todo e condição não fragmentada.
Acuidade de percepção, que podemos chamar de insight, qualidade de alegria
em ação e resposta ao belo são todas qualidades que existem na natureza básica da consciência e podem ser manifestadas juntamente com o amor e o interesse no simples processo inconsciente, surgindo naturalmente, dando atenção sem nenhuma mancha de um desígnio ulterior. A ação que se realizassem qualquer "auto" - consciência - pode consistir em modos de cognição como ouvir ou observar; ou pode tomar a forma de pensamento e de atos abertos em relação ao mundo exterior. Esses modos de ação tornam-se tão mais claramente definidos e trazem à luz as harmonias que se encontram na base do próprio ser e da própria vida em geral quando surgem de uma condição de pura negatividade. Esta negatividade é, na realidade, humildade e altruísmo. É condição em que pode haver uma doação completa de si, isto é, de tudo que está na natureza pura do ser, ou consciência em sua pureza, e é esta doação que é vivenciada como devoção, como amor, e outras emoções difíceis de denominar por causa de sua sutil natureza espiritual, porém tudo sem o menor toque de busca por si mesmo. Este espírito de doação se reflete então, também, nas relações e atos externos das pessoas. Nessa negatividade existem profundezas de paz e de silêncio, plenas de um sentido de unidade e de outros entendimentos que constituem a verdade em um sentido vital.
Muitos instrutores religiosos e éticos enfatizaram a importância da dedicação
sincera, bem como da ponderação, até mesmo na realização de atos comuns como
os que são necessários para fazer girar a roda da vida, ou atos que surgem de um espírito desinteressado e altruísta. Por exemplo, na obra Aos Pés do Mestre há o ensinamento de que tudo que se fizer deve ser feito da melhor forma possível. Isto requer inicialmente a energia do prestar atenção, que surge facilmente com o amor ou interesse e, em segundo lugar, a percepção de todos os pontos que precisam ser
mantidos em mente, de forma consciente ou subconsciente, ao realizarmos aquele trabalho.
Se é uma questão de escrever, envolve a construção da frase, a sua relevância em relação ao tema principal, a verdade daquilo que é dito, a adequabilidade e as implicações das palavras usadas e assim por diante. Até um pequeno trecho manuscrito pode apresentar características que demonstram traços psicológicos ou a condição da mente com que foi produzido. Para que o trabalho seja perfeito em todos os seus aspectos, por menor que possa ser em comparação a outros, precisa ser bem feito. Se um pintor começa a retratar um belo sorriso, expressando felicidade pura, serenidade ou alguma outra qualidade, qualquer pequeno toque com o lápis ou com o pincel terá que ser realizado com o maior dos cuidados. Uma sombra a mais ou a menos poderá representar uma grande diferença. Na música, algumas notas podem ser tocadas mais suavemente do que outras; nem por isso elas podem ser consideradas como menos importantes. Nem uma única nota ou intervalo de tempo pode estar faltando. Um intervalo excessivamente curto pode ter um efeito tão expressivo quanto uma pausa longa que serve como um período de suspense a ser aliviado pela nota que segue.
Não existe nada grande ou pequeno, seja em relação ao próprio treinamento da
pessoa, à entidade subjetiva, ao conhecedor e ao realizador, ou nas obras da
natureza. Aquilo que chamamos infinitesimal ou vasto, apenas o é na escala das nossas percepções e capacidades limitadas. Por um lado, as percepções do conhecedor devem estar despertas e, por outro lado, precisamos fazer um auto- treinamento no uso dos meios de ação, sejam estes os nossos membros e órgãos sensoriais ou algo que precisamos aprender a manejar ou usar, de acordo com uma determinada técnica. Para ambas essas finalidades a atenção é necessária. Porém, atrás de cada ato de atenção, há a própria pessoa, e a própria pessoa significa a própria condição, aquilo que nos tornamos no decorrer dos anos. É esta condição, separada das limitações do instrumento físico, que limita a capacidade para a atenção e outras possibilidades de ação, de parte da consciência individual. Quando não há motivação egoística de ganho ou de prazer, então haverá na atenção prestada uma qualidade de liberdade e também um caminho aberto para a manifestação de outras características da natureza pura da consciência. Quando o eu não participa, tampouco haverá vaidade. O que é então feito, o é apenas pelo que significa em si mesmo, seu valor, beleza ou retidão intrínsecos. Tal ação liberta a pessoa de suas preocupações, das pressões internas sob as quais sofre a maior parte do tempo na vida normal, viabilizando, assim, a vida fluir livremente e revelar sua própria natureza enquanto algo distinto de um eu condicionado que passa a existir e direcionar aquela corrente. A atenção é expansiva, mas quando é acorrentada ao eu, ela não pode ir longe; perde a sua ritmicidade natural que é proporcional ao interesse que se sente. Quando não estiver assim amarrada - e esta amarra poderá ser muito sutil e elástica - retira-se a pessoa completamente do seu eu. Portanto, o trabalho que é realizado apenas pelo amor ao trabalho ou "pela glória de Deus" - um Deus que é desconhecido e nada tem a ver com o eu - sem
qualquer objetivo pessoal, não satisfazendo qualquer impulso pessoal, sempre traz um sentido interno de renovação e tranquilidade.
J. Krishnamurti frequentemente fala da importância de ouvir com atenção total as pessoas que vêm nos falar, ouvir a natureza e também os nossos próprios pensamentos e impulsos internos. Este ouvir está dentro de nossa capacidade e pode acompanhar a observação também com atenção completa. Geralmente ouvimos meio distraídos, seja em conversa pessoal ou em um debate, talvez pensando, até mesmo enquanto estamos aparentemente ouvindo, naquilo que nós queremos dizer. Mas é apenas quando a mente não estiver preocupada, quando não estiver oprimida, movendo-se em sua rotina, revolvendo suas próprias ideias, que ela poderá dar o tipo de atenção que pode nos manifestar a riqueza inerente da vida.
Se tentamos ouvir todos os sons que possam estar no ar em uma determinada
ocasião, sejam os ruídos do trânsito, o som de alguém que está falando ou algo que
está caindo no chão, ou o zunir de insetos, podemos estar conscientes de todos esses sons simultaneamente se a mente estiver desimpedida - o que mostra que a atenção não precisa ser um ato positivo limitado, mas que a sua natureza essencial é aberta e inclusa. Assim também ocorre com a observação. Uma criança observa de modo mais concentrado do que nós o fazemos, porque a mente da criança está desobstruída. A palavra sânscrita Sruti, usada com relação às escrituras hindus, geralmente é interpretada como o ensinamento que foi transmitido oralmente e se origina de um instrutor ou de alguém que revela algo considerado como instruído. Mas também pode ser entendida como verdade ou conhecimento atingido em um estado de escuta interior com a mente e coração abertos, porém com atenção total; em outras palavras, pode ser verdade externada por uma voz que emana do silêncio absoluto dentro de nós.
Ocasionalmente pode-se ter experimentado um estado de total atenção que, à semelhança do amor, envolve o todo do nosso ser. A mente que normalmente usamos é apenas uma parte disto. Se o nosso coração não está em alguma coisa que fazemos, é quase impossível para a mente dar-lhe a necessária atenção. Quando esta ação total realiza-se, não apenas a mente mas também o coração, nosso ser mais profundo, e o interesse que dele surge, estão todos ocupados e até mesmo o cérebro e os nervos estarão sintonizados naquela condição. Se alguma vez já o experimentamos, sabemos que tem uma qualidade muito particular.
Esta qualidade é compreendida no amor ou na verdadeira devoção que
constitui realmente o amor uni-direcionado com uma intensa atração para o belo e outros atributos como nobreza, dignidade e assim por diante, que estão presentes no objeto do amor. Shri Krishna, falando de Deus que está presente tanto no homem como na natureza, descreve, no Gita, a condição da mente e do coração de um verdadeiro devoto seu. Ele diz: "coloca teu coração e mente em mim, medita em mim, mergulhe em mim". Estas palavras, se viessem de um Deus exterior ou extra-cósmico, seriam terrivelmente totalitárias, porém Shri Krishna representa o Princípio espiritual central imanente em todas as coisas e no homem;
e, de acordo com a mentalidade hindu, ele também é a quintessência da beleza que assume para cada ser puro a forma ou expressão à qual é irresistivelmente atraído e que molda todos os aspectos daquele ser de acordo com a sua própria semelhança. A palavra Krishna significa "aquele que atrai", e é uma atração que está na natureza das coisas e que só podemos chamar de amor. Foi dito que o amor transforma aquele que ama à semelhança daquele que é amado. É um amor que pode ser tão profundo e real e íntimo quanto o amor daquele que ama; não obstante, não pode ser perfeito, ou amor em verdade absoluta, a menos que esteja isento de qualquer expectativa ou desejo de possuir como é a nossa contemplação da beleza da natureza no pôr-do-sol.
A verdadeira devoção não é exigida ou obtida por meios coercitivos. Passar
pelos movimentos da devoção, mesmo adotando a postura de uma entrega completa como muitas pessoas o fazem, não evocará a realidade da devoção, embora possa iludir o homem que assim procede; assim como um abraço físico, embora um sinal de afeto ou de amor, não pode por si mesmo evocar a realidade do amor. O amor, assim como a devoção, precisa surgir por si mesmo; e surgirá quando não houver impedimento, porque faz parte da riqueza da vida, capacidade para a qual reside potencialmente nas profundezas do coração humano, sendo que a palavra "coração" marca o lado mais profundo e mais sensível do homem. A consciência de uma pessoa quando está livre para expandir-se, e não fechada como quando está centrada em si mesma, floresce sozinha. O que significa essa florescência, a sua alegria e beleza, é experimentado no amor, mesmo assim como o conhecemos.
Quando uma árvore está em flor, a vida naquela árvore está ativa na mais bela forma. Da mesma maneira, pode haver a florescência espontânea de uma natureza de extraordinárias sutileza e sensibilidade profundamente no homem, à qual podemos aplicar a palavra "alma". Esta natureza é então revelada como constituindo em sua unidade o homem real, e tudo o mais é apenas um invólucro exterior. O florescer desta natureza, cuja beleza então se manifesta em todo o pensamento, sentimento e ação, realiza-se apenas em uma atmosfera de liberdade dentro de si, de cada elemento que possa estar no seu caminho e impedir a harmonia inata daquele processo. Se uma flor desconhecida nasce do solo de nossa mente e coração, e nela brotam as mais delicadas pétalas, na realidade, se a consciência assumir a forma daquela flor, nada pode haver naquele solo que não possa prestar-se àquele processo, que não possa tornar-se parte daquela harmonia em evolução. Isto significa que todo elemento de rigidez, desigualdade ou irregularidade em nossa condição interna precisa ser eliminado. Deve haver a máxima flexibilidade do espírito e da mente, de modo que haja a possibilidade, em cada momento, de compreender o padrão daquela flor desconhecida, mas também suficiente firmeza em cada momento, para que a sua forma possa manter-se em posição, uma firmeza que consiste essencialmente em uma condição de não ser afetado por forças que podem procurar desviá-la. Este é um símile material e precisa ser traduzido em termos psicológios adequados que
descrevem as condições do coração e da mente. Quando assim traduzido, isto apenas poderá significar uma renúncia total ao eu, uma condição que está liberta de todas as contradições ou pares de opostos. Quando não houver eu que obstrua, causando estes opostos, o campo estará totalmente aberto e limpo, e será um campo de cognição e sensibilidade puras. É indicado em tratados como a Luz no Caminho e outras obras mais antigas que a verdade que então se manifesta é de uma natureza que não pode ser preconcebida, sendo uma revelação da harmonia e das potencialidades que existem nas profundezas impolutas da vida.
O EU CAMBIANTE: SUA EVOLUÇÃO

É um fato assaz maravilhoso e extraordinário que todas as qualidades basicamente belas como humildade, simplicidade, pureza e outras que são inomináveis fundam-se em uma condição de mente e de coração. Igualmente, todos os vícios estão vinculados reciprocamente, sendo todos eles a progênie de auto-asserção egoística e de desejo; constituem um grupo estreitamente associado, enquanto que as virtudes, consideradas separadamente, constituem uma única constelação.
É o desejo por aquilo que se quer e se gosta, ou busca possuir e reter, que nos torna tão auto-assertivos. Mas será que não pode haver o movimento puro do coração, semelhante ao desejo - embora não possamos denominá-lo desejo - que não tenha a sua origem no eu? Tal desejo, sem um eu que se vincula ao objeto desejado, possui a mesma qualidade que o amor. Surge de uma mudança no nosso coração, de uma inclinação da vontade, que faz com que a beleza de algo, seja uma pessoa, um objeto, fenômeno ou ideia, flua dentro do coração. Tal movimento surge, não da memória de uma experiência precedente, como ocorre com o desejo comum, porém como uma qualidade que pertence ao livre fluxo da vida. A assertiva e o desejo que busca possuir andam juntos. Podemos não ter compreendido quão estreitamente estão ligados. Quanto mais exigências e impulsos a pessoa tiver, tanto mais dominadora e assertiva ela certamente será. Quando digo "eu quero isto", a ênfase, por mais inconsciente que seja, está centrada no eu.
Todos os vícios surgem de um eu que está potencialmente, ou de fato, em conflito com outros; todas as virtudes, da verdade que ultrapassa aquele eu com uma natureza de harmonia e beleza. A verdade, em um sentido abrangente é tanto subjetiva quanto objetiva. Subjetivamente, é verdade no próprio ser, na sua natureza e na sua ação. Em relação a coisas externas, encontra-se no ver as coisas como elas são, não apenas sua aparência, os fatos crus sobre elas que não nos tocam profundamente, mas também aquelas formas internas ou ideais subjacentes a essa aparência. É a resposta ao ideal que está subjacente ao assim chamado real que evoca em nós o senso de harmonia, embora até mesmo ver o fato como fato e compreender o seu lugar faça parte da resposta completa. É apenas a natureza do verdadeiro ser que pode responder de modo tão completo; é verdadeiro no sentido de não estar viciado, tornando insensível ou deformado por influências que lhe são externas. Sendo todas as virtudes expressões desta natureza, cada uma está relacionada com as demais. Cada virtude representa uma forma ideal da ação ou do ser, e todos os ideais que se refletem na conduta, pensamento ou sentimento, são aspectos de uma verdade ideal que está integrada naquele ser sem deformação. Quando se desperta para a existência desta verdade dentro de si, os seus diferentes aspectos surgem em tantas formas de beleza, como estrelas em
um céu do qual desapareceram as nuvens.
Todas as nuvens têm sua origem na terra, e as nuvens no nosso céu mental
nascem do apego à sensação em várias formas. O apego a qualquer tipo de sensação, seja física ou emocional, traz consigo ardor e tensão. Pode haver algum grau de ardor ou de febre no sistema da pessoa, porém pode ser que não se perceba aquele fato quando a ele se ficou acostumado. Quando há apego a algo que causa prazer, haverá o impulso para segurar o objeto ou possuí-lo. Todo apego visa a uma sensação de prazer; o objeto ou a pessoa a ele vinculada constitui apenas o meio através do qual aquela sensação é obtida, substituída na medida em que as exigências o requerem. Não se pode realmente encontrar paz na vida, a paz que desce até às raízes do ser, a menos que se tenha eliminado da natureza toda tensão febril, o desejo por um ou outro tipo de satisfação, seja em ater-se às coisas ou em possuí-las ou em construir mais e mais do que quer que seja que dê à pessoa um sentido de segurança.
As nuvens no nosso céu nasceram do solo da nossa natureza, isto é, a sua condição, porém, há o céu límpido além delas. A pessoa que não teve nem mesmo um vislumbre momentâneo da natureza e da beleza daquele céu, nem mesmo acreditará que ele existe; se lhe falarem a respeito, pensará que é algo fantasioso; existem apenas as nuvens. Este céu sem nuvens é mencionado nos livros sânscritos como Chit Akasha ou Chit Ambaram, sendo que chit representa a inteligência, akasha ou ambaram a expansão, ou céu de pura inteligência, de consciência em seu estado original.
Esta expansão, completamente íntegra, corresponde no plano espiritual-
intelectual ao contínuo do espaço, ou ao espaço e ao tempo, sem distorção. A nuvem que se acumula e oculta este céu carrega a mistura de várias emoções pessoais que escurecem a nossa existência. Quando há o apego e o desejo que ele gera, haverá também frustração e infelicidade, porque aquilo que é desejado nem sempre é atingido; e até mesmo quando o é, depois de certo período de tempo, não nos dá a felicidade que se espera. E há a reação ao seu gozo, a menos que seja um gozo puro sem qualquer vontade que insista na sua continuação ou retenção. Há frustração quando as esperanças ou não são realizadas ou não fornecem a satisfação que se esperava. Continuando no mesmo exemplo, periodicamente as nuvens se descarregam em forma de lágrimas de auto-piedade e de lamento.
As vidas de tantas pessoas são inexpressivas e tristes não pela falta de acontecimentos interessantes e fenômenos, mas por causa de um pesado véu sob o qual as pessoas vivem e têm a sua existência. Pode-se viver em meio a um turbilhão de excitações, mas quando se desgasta a novidade de uma coisa após outra, a vida passa a ser inexpressiva, perde o seu impulso, e destitui-se de alegria; as excitações, então, apenas somam para a infelicidade. Constitui uma experiência bastante diferente viver sem um véu obscurecedor sobre as nossas vidas. É a nuvem impregnada com nossas memórias que sobrecarrega o céu da consciência pura. As memórias precisam necessariamente existir como impressões recebidas no passado, mas elas podem existir sem se transformarem em nuvens carregadas com
reações que afetam o presente. Quando este é o caso, elas desaparecem do nosso horizonte sem obstruir a luz que flui de cima. É memória carregada com paixões, com anseios, ressentimentos e assim por diante, que cria os nossos diferentes estados de humor, para usar a linguagem do alquimista, a cólera, a melancolia etc.; são todas aflições do eu psíquico, o corpo de nossa mente e emoções, dando origem a complicações e desordens que ocasionam diferentes tipos de disfunções.
Quando se estuda isto de uma forma puramente intelectual, está-se apenas
manuseando um mapa; o mapa não é o país. É necessário viajar pessoalmente pelo país, e a viagem é muito diferente de ver o mapa e de observar as suas características. A questão prática que então se nos apresenta é a seguinte: Como se pode eliminar completamente estes estados de humor, o céu cheio de nuvens, a geração contínua de reações que obscurecem a nossa existência?
O que acontece no curso natural dos acontecimentos? As nuvens desaparecem
na morte, não imediatamente, porém no processo iniciado pela morte, que é a
morte real, de acordo com os grandes Instrutores espirituais, cujo ensinamento sobre este assunto está bem de acordo com aquilo que podemos compreender das nossas próprias constituições e naturezas. Terão de desaparecer juntamente com as condições que as produziram, as condições da recente vida terrena. Pode-se ser agradecido pelo fato de que há, em dado momento, um fim para um processo que nada é senão um contínuo semear, na maioria das vezes produzindo lamento. É uma condição subjetiva, interna, a qual precisamos atravessar como no sono, quando não mais existe o desafio dos acontecimentos a que estivemos respondendo durante a vida terrena. Faltando o reforço e entregue a si mesma, a condição terá que se modificar, tornando-se mais leve e mais fácil. As nuvens que estiveram presentes, não mais em sua plenitude, ou terão de descarregar-se ou evaporarão e desaparecerão. São todas formadas por estágios no curso dos contatos com o mundo externo, e terão de chegar a um fim por etapas, quando dele forem seccionadas. Tudo isto pode ser tido como provável a partir de um estudo do próprio eu psicológico.
Então é o céu claro que terá que emergir, sendo este céu uma expansão pura de
consciência. Naquele céu límpido, as estrelas que aparecerem - talvez inicialmente
sejam apenas algumas poucas - seriam as verdades espirituais que se tornam auto- evidentes. Todas as formações prévias na mente foram dissolvidas. Mas pode existir uma infinidade de formas de harmonia que podem surgir e aflorar à visão, quando nada existe para obstruir as nossas percepções, embora as verdades mais próximas da nossa compreensão devam ser entendidas inicialmente. A entidade que alcançou assim o topo, em seu momento, é incapaz de ali permanecer para sempre, se ainda possuir reminiscências de ignorância que geram um movimento descendente, quando volta a sua atenção para fora de si mesma. Assim é o ensinamento antigo. Se consideramos a consciência de um indivíduo como consistindo em dois aspectos, o inferior sendo formado pelos seus contatos na terra e o superior, o aspecto metaforicamente descrito como o céu com as suas estrelas, a entidade que ainda possui vínculos ou afinidades com a terra terá que retomar às condições terrenas. O
Gita exprime esta volta do ciclo nas palavras seguintes: (livremente traduzidas) "Tendo exaurido o mérito adquirido, o indivíduo retorna à Terra".
A entidade que renasce é fresca, pura, praticamente um ser novo. O velho foi transformado em novo, que é contrário à regra aparente da natureza, onde o novo constantemente passa a ser o velho. Se a pessoa puder olhar simultaneamente com algum tipo de visão que ligue o tempo interveniente até o homem idoso da última encarnação, talvez dissoluto, maculado, desgastado e endurecido, porém não disposto a morrer, e a criança jovem reencarnada, meiga, alegre, doce, nova e inocente, apreciando avidamente a vida, seria difícil de acreditar-se que os dois quadros pertencem a uma e a mesma entidade. É a criatura encantadora que em dias passados e em outras condições aparecia como o homem pesado e desagradável, cujos desejos eram insaciáveis, até mesmo de coisas que ele já tinha tido até a saciedade. Como é estranha a mudança! O reverso do processo de dissolução, que é a morte, ocorre em nossas vidas, mas a enfrentamos porque a mudança é tão gradual e assim acostumamo-nos a ela progressivamente. Quando se compreende a natureza revolucionária da mudança que a morte pode trazer, compreende-se também o seu lugar no esquema das coisas. O seu verdadeiro processo interior pode ser posto em movimento em meio às nossas vidas no aqui e no agora. A renovação que aguarda o período da liberação do corpo, quando deixa tudo entregue a si mesmo, pode realizar-se dia após dia no presente, enquanto ainda estamos em nossos corpos. A morte, como um processo de descarregamento interno, purificador e suavizador, não é a morte da deteriorização e da decadência. A morte tem uma significação para o homem externo, e algo oposto em relação à sua natureza interior.
A transformação do velho no novo torna-se possível porque o frescor e a beleza que surgem são inerentes à alma. Não é algo novo que é criado, e sim uma natureza que esteve presente, embora oculta, que é revelada e manifestada. A alma, na sua verdadeira natureza, não pode deteriorar-se - isto terá que ser considerado como um postulado - ela é um receptáculo, ou meio, das águas mais frescas da vida. É a mente que se deteriora e, naturalmente, também o corpo, influenciando a mente. É a natureza da relação entre a alma e a mente que possibilita que a mente em sua liberdade torne-se corrompida e então ela obscurece e se divorcia da alma. É a mente corrupta e doentia, que é o fator principal na deterioração das nossas naturezas terrenas e a alma, que possui uma natureza tão diferente, está tão distanciada no interior das vestes materiais e mentais que a sua própria existência é ponto de conjectura e dúvida. Sabemos pouco a respeito dela porque a sua natureza tem tão pouca ação em nossas vidas comuns. As pessoas têm todo tipo de ideias fantásticas a seu respeito, como se fosse um objeto igual a um gato preto em um quarto escuro, ao invés do conhecedor puro ou o sujeito em uma pessoa.
A natureza inerente da vida é uma natureza de frescor, de energia, de sensibilidade e beleza; ela precisa ser libertada, não adquirida. Se isto é assim, atribui uma configuração ou aspecto diferente ao todo do problema da transformação que é possível em nós. É um problema apenas para a mente que pensa na base das aparências. Deixa de ser problema quando se vê a possibilidade, bem como a
vantagem, da condição representada pela palavra "alma". Quando a mente está totalmente quieta, tendo renunciado a tudo de finalidade ou preocupação pessoal, então aquela outra natureza a ser vinculada com aquela palavra surge no próprio horizonte e se manifesta.
Retornamos à encarnação com aquela natureza verdadeira e original refletida na criança, porém a nova entidade muito em breve fica obscurecida e torna-se muito semelhante às pessoas ao seu redor. Ela sucumbe às várias influências estranhas à sua verdadeira natureza, em virtude da falta de percepção. Deveria ser possível para a pessoa atravessar os sucessivos estágios de sua vida sem sucumbir desta maneira, não passando pela metamorfose infeliz que se realiza na maioria dos casos. Mas raro é o indivíduo que permanece não afetado, puro como um lírio em uma lagoa, mesmo em meio às impurezas e às algas em decadência. Ocasionalmente pode-se ver um toque daquela qualidade em alguma pessoa excepcional, ao longo da qual o mundo costuma passar como se nada representasse.
Qualquer idade pode ser bela em si mesma, sem dar origem a qualquer
deterioração interior. A criança inocente poderá reter a sua inocência, e mesmo assim pode crescer para estar plena daquele encanto especial da juventude, seja menino ou menina, o ardor, a esperteza e a prontidão para responder e agir sinceramente. Até mesmo na idade avançada podemos ser, no fundo, uma criança e também estarmos repletos de um espírito jovem, capazes de beber na poesia da vida - não o tipo de juventude efervescente que é característico da imaturidade da pessoa, pronta a entregar-se a qualquer coisa para ser seduzida e presa. Há juventude e juventude. Infelizmente, a plenitude da juventude que está na natureza da alma não está muito em evidência atualmente, mas existe o outro tipo que é auto-assertivo e auto-consciente e que despreza os mais velhos, pensando que pode construir um mundo novo sem ele próprio ser novo. Tal pensamento constitui meramente uma expressão de uma reação cega à velha ordem das coisas. Embora seja esse tipo de juventude que se projete na atualidade, esperamos que haja também parte daquele outro tipo que possui as virtudes e a graça da juventude justamente com a energia de um espírito expansivo. A modéstia, a afeição em prontidão, a disposição de aprender, o cuidado e o respeito pelas pessoas, amor à ordem - virtudes tão altamente apreciadas antigamente - será que todas elas não poderiam coexistir com o brilho da energia jovem, bem como o pensamento renovado e não afetado? Deveria ser possível. Se achamos que não o é, então não teremos atingido aquela condição de existência onde se encontra esta possibilidade. Aquilo que imaginamos ser possível como condição que pode ser alcançada em nós mesmos e que é extremamente desejável pode ser alcançado porque ela indica que esta condição interna já está presente em algum ponto dentro de nós e dela nos conscientizamos.
A última fase da vida também pode ser bela como o sol em declínio entre as cores do outono, o maravilhoso cenário que a natureza apresenta em determinado período do ano, quando todas as árvores são cheias de cores, e o calor do sol é
suave, sem resquícios da sua fúria anterior, e ele afunda com uma beleza singular naquela esfera que está além da nossa visão. Na idade avançada pode haver uma qualidade como a luz do sol que se põe, carregando a inocência, o ardor, a capacidade de compreender e realizar nos períodos anteriores, mas também manifestando sua suavidade e maturidade especiais, imbuídos de um espírito de paz, disposto a penetrar nas profundezas de uma condição que transcende tudo que até então foi vivenciado. Tal vida desde o início até o fim seria o fenômeno mais belo de existência. Na história do mundo, deve ter havido alguns espíritos escolhidos que assim viveram, prosseguindo de uma fase da vida para outra, todas interligadas melodiosamente e fluindo à semelhança de um belo córrego.
A vida está repleta de dificuldades e de problemas, porém em meio a eles e às
contradições que se apresentam, tarefas e responsabilidades, deve ser possível ter uma condição interior que manifeste a beleza de um Espírito que, à semelhança do sol quando nasce, atravessa os céus e se põe, lançando os seus raios em ângulos diferentes, porém soando em cada fase da jornada a sua melodia apropriada.
A natureza renova as formas da vida em seus domínios de forma mecânica e
periódica; a renovação é apenas uma fase de um ciclo. Mas podemos renovar-nos definitivamente com a nossa livre inteligência; não a mente agitada e inventiva, porém uma inteligência que funciona em desapego e paz. Da mesma maneira corno o sol retira os seus raios da terra que escurece, nós podemos retirar o nosso interesse febril das condições que criamos, incluindo tudo que a ele se atém, a condição em que estabelecemos com todas as nossas posses, posição e prazeres, em resumo, a formação psíquica complexa com a qual circundamos o verdadeiro ser interior. Deve ser possível, mesmo antes da nossa morte, penetrar nas profundezas daquela consciência interior que anuncia paz e compreensão perfeitas, embora continuemos a fazer o que é necessário no mundo, nele não perdendo o interesse, porém permanecendo em contato com seus povos, conscientes de suas preocupações e insensatez.
Diz-se que o Buda falou o seguinte: "Deixai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem, limpai o vosso própno coração. Esse é o ensinamento dos Budas." Podemos ser tocados profundamente por esta fraseologia simples, abrangendo uma profundidade tão extensa de significado. Quando a purificação se realizou, há também a simplicidade em nossas natureza e vida. As nuvens criam uma condição atmosférica complexa, mas, quando esta desaparece, o céu afigura-se sereno e simples. Esta é realmente uma condição de estar livre de todos os elementos em nossa natureza que ocasionem decadência, que destorcem, que nos façam cair na simplicidade original em uma condição de estarmos dissolutos, desejando cada vez mais e mais, nunca estando satisfeitos, plenos de auto-piedadde e de impulsos que parecem insaciáveis. É apenas em tal estado de coração e de mente que podemos realmente conhecer a verdade que importa. Até então, qualquer verdade que imaginamos conhecer será meramente exotérica, será apenas a casca e não a semente, a aparência, e não a coisa real.

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