segunda-feira, 30 de julho de 2018

O eu de olho em… Eu: Monja coen

O eu de olho em… Eu

O mais importante retiro da tradição Sôtô Zen chama-se Retiro da Iluminação de Buda, que acontece na primeira semana de dezembro. Como o templo não abriga uma área suficiente de prática, um espaço é alugado. O convento franciscano Emaús, em Itapecerica da Serra, no estado de São Paulo, foi o escolhido em uma ocasião, abrigando o grupo de 29 praticantes.

É um lugar aprazível, muito confortável, administrado por irmãs de origem alemã, que preparavam uma comida caprichosa a partir de alimentos da própria horta. Os quartos eram individuais e com seus próprios banheiros, e a sala de meditação, encravada na mata, proporcionava ouvir os pássaros, a gritaria dos bugios, o vento penteando o arvoredo. Muito bonito.

E mais bonito ainda do que toda a natureza em volta foi o retorno ao eu verdadeiro, à essência – lembrou Coen Rôshi. Sentávamos em meditação desde as 5h30 da manhã até as 9h30 da noite. Parávamos para as refeições, seguidas de uma caminhada em silêncio. Ficamos sete dias e sete noites em silêncio. Da mesma maneira que ficou Xaquiamuni Buda, há 2.600 anos, na Índia. E passamos por experiências semelhantes às de Xaquiamuni Buda.

O início do processo meditativo, de retiro, a mente cheia de pensamentos sobre a casa, o trabalho, a família, as preocupações do mundo. Aos poucos, tudo vai se aquietando. Depois, reclama-se que o corpo dói, que as pernas estão desconfortáveis, que doem as costas – e vamos deixando isso também passar. Queremos ter sensações agradáveis, mas também precisamos abrir mão também das sensações agradáveis. Então, chegamos àquele ponto ao qual chegou Xaquiamuni Buda, quando, ao ver a estrela da manhã do oitavo dia, disse “eu, a grande Terra e todos os seres, juntos, simultaneamente, nos tornamos o Caminho”.

O que é tornar-se o Caminho, essa experiência que torna um ser iluminado, um Buda, aquele que desperta para a Verdade? Você está acordado para a Verdade? Isto é importante: poder ver com clareza a realidade e adquirir o discernimento correto. Poder fazer as escolhas adequadas que vão beneficiar não só a si, não só o “meu euzinho menor”, mas o “eu maior”.

É preciso acessar esse “eu maior”, sair do nosso egoísmo, egocentrismo – em japonês chama-se “uagamama” –, e buscar o que pode beneficiar o maior número de pessoas. Isso é ter uma mente Buda, isso é Iluminação de Buda. Pensar que o eu é igual à grande Terra, que é igual a todos os seres. Dessa verdadeira compreensão nasce uma “obrigação”, uma “tarefa” que é acatada com suavidade e doçura: cuidar. Cuidar com respeito de quem você encontra, de quem você se lembra e do que você pensa sobre as pessoas. Você pensa nos outros sem discriminação nem preconceito?

Enquanto estávamos no retiro – contou Coen –, Mandela morreu; o que eu só soube depois. Mandela foi muito importante no processo de não discriminação. Durante 27 anos preso, ele se exercitou fisicamente mas também mentalmente, meditando, orando e escrevendo. Saiu enfraquecido, sim, mas com uma mente saudável, enquanto muitos vão para os presídios e acabam doentes.

Seu propósito, seu objetivo não havia morrido. Nenhum cárcere pode nos matar quando nosso propósito é verdadeiro e benéfico; não é pessoal, mas do “eu maior”. Quando estamos fazendo algo pelo bem coletivo, maior do que nós. É assim que é.

Curioso que também recebi mensagens afirmando que Mandela não era tão maravilhoso quanto parecia, que ele não cuidou dos filhos, um deles, inclusive, tendo morrido de aids. Pois bem, houve um momento em que nem se sabia do horror que viria a ser essa doença. Lembremos também que Margaret Thatcher, que foi primeira-ministra inglesa, igualmente convivia com a mesma reclamação por parte dos filhos. Mergulhada na vida política, não encontrava tempo para a família. Mas não significa abandono, mas, sim, deixá-los com pessoas que pudessem cuidar bem deles.

Xaquiamuni Buda também largou a família, mais precisamente um filho recém-nascido. Porque ele tinha esse questionamento. Não se trata de ser bom abandonar os filhos, porque não se largam os filhos, eles vão conosco aonde quer que estejamos. Se você tem uma vida muito agitada e atarefada, sem tempo para cuidar de um filho com a decência de que esse ser humano precisa, a quem você recorre? Que condições você cria para que esse ser humano cresça com dignidade? Como podemos dar condições para que os filhos sejam bem cuidados? A resposta está no Caminho.

Há uma curta narrativa budista, verídica, sobre um sujeito que vai à feira e pergunta ao açougueiro: “Você tem a melhor carne?”, ao que ele responde: “Eu só vendo a melhor carne”. E o sujeito se ilumina.

Reflita um pouco sobre esse diálogo e tente enxergar nele o Caminho. Como é que a mente Buda percebe que tudo é o Caminho? Seja onde for, você vai comprar algo e pergunta: “Qual o melhor que você tem?”. A resposta será: “Tudo o que eu tenho é de muito boa qualidade”. Certa vez, o mestre de transmissão dos ensinamentos a Coen Rôshi deu-lhe um manto, dele mesmo, que era bem usado, bem velhinho. Coen vestiu o manto e outro monge admirou-se com “um manto de seda!”. Mas Coen replicou que não era seda, era um manto de tecido jogado fora, que para o budismo é considerado o mais sagrado. Sagrado porque não está contaminado com desejos nem apegos. Para a mente Buda, todo tecido é um verdadeiro tecido. Não faz diferença se é sintético, de algodão ou de seda. São qualidades diferentes, mas todos têm a sua preciosidade e são perfeitos como são. E essa é a mesma ideia de você ir ao açougue, perguntar pela melhor carne e receber uma resposta iluminadora: “Todas são”.


O sagrado está em toda parte. E está em nós também, em cada um de nós. Por isso no budismo diz-se que temos que encontrar esse olhar, o chamado olhar Buda. É similar ao olhar sagrado, como se o olhar de Jesus ou o de Maomé ou outro iluminado estivesse em você. Um olhar que se desenvolve para ver que existem maravilhas acontecendo, mesmo nas maiores adversidades e com os maiores problemas que se possa ter.

Ainda no Japão, no mosteiro de Nagoya, os relacionamentos entre as monjas eventualmente ficavam difíceis. E reclamavam uma da outra, cobravam uma da outra. A mestra apenas dizia: “Olhem para Buda”. A jovem Monja Coen, ainda na ignorância, pensava que era para ficar olhando a imagem no altar. Essa imagem, na verdade, é simbólica do estado iluminado, mas a jovem monja só percebeu tempos mais tarde, depois de olhar inúmeras vezes para a imagem à espera de que ela se manifestasse e lhe dissesse alguma coisa. “Olhe para Buda” significa o “eu” olhando para o “eu”. Olhe para sua parte mais íntima, aquele lugar que transcende o euzinho pequeno, a visão de sabedoria da realidade, e perceba que você tem essa resposta em si mesmo. Não se deixe contaminar pelas coisas menores e superficiais. Elas estão aí, elas são importantes, temos de lidar com tudo isso, com a inveja, com o ciúme, com todas as emoções, positivas e prejudiciais, mas lidar com elas com o olhar Buda é acolhê-las. Algumas delas, certamente, temos que, com muito carinho, colocar para dormir.

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