segunda-feira, 30 de julho de 2018

Zen para distraídos: um dos textos do livro de Monja Coen

Retire-se

Certa vez, um discípulo questionou seu mestre:
— Mestre, como posso ouvir Brahma, como posso ouvir a voz do ser, do criador?
O mestre silenciou.
— Por favor, mestre — insistiu o discípulo —, diga-me como reconhecer, como compreender a origem das origens.
Mas o mestre permanecia em silêncio. Contrariado, o aluno insistiu na pergunta uma terceira vez.
— Eu estava lhe falando dele o tempo todo — disse o mestre —, mas você não é capaz de ouvi-lo porque fala muito.

Quando a mente silencia, podemos ouvir melhor a Verdade e perceber o Caminho. Nossa mente às vezes interfere e fica falando muito. Há um texto do século XIV, do mestre japonês Keizan Jokin Zenji2(1268-1325), que diz: “Quando examinamos com cuidado, encontramos três tipos: a mente, o pensamento e a consciência”. A consciência é o aspecto de discriminação entre amor e ódio, certo e errado. O pensamento diferencia entre frio e calor, reconhece a dor e a coceira. O que é chamado de mente é aquilo que não discerne entre certo e errado, não reconhece dor ou coceira; é como um muro, uma parede, madeira ou pedra. Pode ser verdadeiramente tranquila, como se não tivesse olhos nem ouvidos, como um boneco de madeira; uma estátua de ferro, que tem dois olhos, mas não pode ver. Tem ouvidos, mas não pode ouvir. Palavras e conceitos não podem descrevê-la.

Embora possa ser chamada de “mente”, é de fato a origem da cognição, do conhecimento, da percepção de calor e frio, dor e coceira. Pensamento e consciência surgem daí. Portanto, não cometa o erro de pensar que essa é sua mente original. E aprender o Caminho é ir além da mente, do pensamento e da consciência; ir além do corpo e da mente. Onde há uma claridade magnífica estável. Investigue com cuidado para que possa atingir esse estágio. Quando você procura, não encontra nada.
O zen-budismo é essencialmente meditação. Meditação em silêncio, de frente para uma parede branca, sem quaisquer estímulos, como as imagens e mandalas do budismo tibetano. É permitir que o que está no mais íntimo venha à superfície da consciência. Não sou eu que me ilumino; tudo o que existe jorra luz em mim. Apreciar. Perceber a luz que chega agora. A luz da vida, a luz da sabedoria, a luz da compaixão ilimitada. Isso é o zen, o compreender a si mesmo.

Os retiros são momentos especiais para o zen. Os retiros zen-budistas são lugares de silêncio, nos quais a boca silencia as palavras comuns e os lábios só se abrem para repetir os ensinamentos de Buda. Não se fazem gestos extras, mas as mãos mantêm-se em quietude e tenta-se conservar a mente em observação clara e profunda de si mesmo e de tudo em sua volta. É o retirar-se das atividades comuns do dia a dia, da maneira habitual de acordar, de tomar café, de falar, de conversar com outras pessoas, do trabalho e dos divertimentos; retirar-se para um lugar onde se vai ficar em meditação, em silêncio.

Em uma das noites em que Otávio Leal, fundador da Humaniversidade, estava no estúdio da Rádio Mundial com Coen Rôshi, ele quis saber:

— Outro dia, Sensei, assisti ao filme Paraíso das ilusões, e nele há um monge budista. Perguntam a ele como é a vida no mosteiro e ele diz que a cama é ruim, a meditação é no chão duro, a comida é ruim; mas uma hora tudo faz sentido. É assim mesmo? Uma hora tudo faz sentido?

— Sim! — exclamou a mestra. — Acabei de sair de um retiro com 37 pessoas e, no final, estávamos em tão grande harmonia! Mas, no início, havia muitas pessoas com receio de ficarem incomodadas, de sentirem dor, tantas horas de meditação. Uns começaram sentados em banquinhos e acabaram sentados em posição de lótus. Então, foi o contrário do que acontece muitas vezes. Um monge do meu templo está no Japão, em um mosteiro, passando por treinamento. É um mosteiro masculino, retirado, em uma montanha, distante de qualquer cidade. Mas, há alguns dias, ele foi acompanhar um grupo de monges para uma oração em Kyoto. Ele ficou sozinho no quarto do hotel, em determinado momento, e aproveitou para me telefonar (às escondidas, é verdade, porque o treinamento exige que o monge não fale com ninguém fora do grupo monástico por noventa dias). E ele me disse: “Sensei, é como a senhora disse, difícil, muito difícil, sofrido. Mas que maravilha! Faz sentido e eu não quero ir embora daqui”.

Desde sua Iluminação, com 30 e poucos anos de idade, até a morte, aos 80 anos, Buda foi um professor. As pessoas o procuravam pelos ensinamentos mas também para pedir milagres. Buda respondia que o grande milagre é libertar a mente das amarras criadas por ela mesma. Para isso, precisamos conhecer o processo mental, as emoções, as sensações, as conexões neurais. Porque nós podemos escolher as conexões neurais que levam ao Caminho, à Sabedoria e à Verdade. Esse é o Darma de Buda. Num outro dia no programa:

— Boa noite, monja. Estou ligando aqui da Freguesia do Ó. Tenho dificuldade para me concentrar na meditação. Percebo que, quando chego ao estado alfa, eu vou longe, mas, até conseguir, demoro um tempão. Qual é a dica para se concentrar?
— A prática. A prática incessante. A concentração, inclusive, é uma das seis paramitas do budismo tibetano. As paramitas são práticas que levam à Iluminação. Paramita (ou haramita) 

significa completude, perfeição, um alcançar a outra margem, ter cruzado da margem da delusão e do sofrimento para a margem da Iluminação.3Há várias maneiras de ajudar na concentração, como, concentrar-se na respiração, percebendo a diferença de temperatura entre o ar que entra e o que sai pelas narinas. Nossa mente é invadida por muitos estímulos, de tudo o que acontece durante o dia, e todos eles surgirão quando sentarmos para meditar. É natural. Não há por que ter pressa. Dê tempo a si mesmo. Você já entra em estados meditativos profundos… cada dia é cada dia. Cada momento de meditação vai revelar como você está se sentindo.

Meditar significa entrar em contato com a essência do ser e requer esforço. Muitos portais precisam ser atravessados e superados os seus guardiões, que são muito severos. Eles vêm nos fazer perguntas difíceis, vêm até impedir o Caminho, sugerindo que se vá fazer outra coisa, tentando a outra atividade mais fácil. De dentro de você mesmo partem essas tentativas de impedir que penetre na essência do ser, seu próprio ser.


Quando Monja Coen começou a praticar meditação, morava nos Estados Unidos. Treinava sozinha, orientada por correspondência pelo grupo Self-Realization Fellowship, fundado por Paramahansa Yogananda (1893-1952). Recebia as lições pelo correio e praticava em casa. Não demorou para que desejasse vivenciar as experiências em grupo e, então, passou a frequentar aquela comunidade. Sentavam-se em cadeiras, mas a jovem Cláudia, antes de se tornar Monja Coen, queria sentar na posição de lótus. No entanto, ela não conseguia. E foi assim que decidiu procurar a meditação zen, que é de origem japonesa. Na China, é chamada chan (existe, inclusive, um mosteiro chan em Cotia, São Paulo), e muitos confundem com a ordem Sôtô, cuja sede é no bairro da Liberdade, na cidade de São Paulo, que é também a superintendência-geral da América do Sul. No entanto, as raízes são as mesmas: os ensinamentos de Xaquiamuni Buda, que são mantidos, preservados, vivenciados e transmitidos por todos os monges leigos das inúmeras tradições budistas que existem.

Retiro é silêncio, mas nós também somos o barulho. Há barulho em nós, e nós temos que nos conhecer. O princípio do mestre Dogen diz: estudar o caminho de Buda é estudar a si mesmo. Isso de “si mesmo” é esquecer-se de si mesmo, esquecer-se desse nosso euzinho que Freud veio a chamar de ego. Naquela época essa palavra não existia, mas é o “eu menor” que está reclamando, que é barulhento, que fica gritando “olha pra mim, não me deram o que eu quero”. Sempre reclamando, resmungando. Contudo, não significa negar o barulho, mas ouvi-lo, ouvir o grito. Depois do grito, vem o silêncio. Então, não é questão de forçar o silêncio, mas, sim, de ouvir esse barulho, pois mesmo dentro do barulho há pausas. Então, observamos o que o euzinho está pedindo, que carências tem, e aprendemos a gostar de nós mesmos com nossas carências. É a prática.

E uma boa iniciação na prática dos retiros é o retiro de um dia. No templo de Coen Rôshi, os retiros de um dia são realizados aproximadamente uma vez por mês e conservam as mesmas características dos retiros mais prolongados. 

Começam às 7h da manhã, com um período de meditação de meia hora. Em seguida, uma leitura de sutras, que são os ensinamentos de Buda, os raciocínios que ele desenvolveu e as palavras que proferiu e que nos auxiliam a refletir sobre o dia. Só depois um desjejum rápido é feito, pois meditar com o estômago fazendo a digestão tende a levar ao sono, e meditação não é dormir nem relaxar, é estar em atividade.

Após o desjejum, todos trabalham juntos, limpando os altares e o templo. Há uma relação entre limpar o que parece externo com o asseio do interior de cada um, e o trabalho em grupo define que não há um “eu sozinho”, mas um “nós fazendo”. Quando é feito em conjunto, tudo anda tão mais rápido e tão mais harmonioso que leva cada um a transitar da individualidade para o portal do “eu coletivo”; cuidando, todos para todos, do lugar em que se senta, da sala de aula onde se aprende e estuda, do lugar da prática, da própria casa.

Depois, segue-se outro período de meditação, até o almoço, quando, antes da refeição, é feita uma prece. A função da prece não é pedir, mas agradecer. Quando o alimento chega até nós, faz parte do Caminho refletir sobre como esse alimento chegou, quantas formas de vida estão envolvidas para fazê-lo. Para um prato de arroz e feijão chegar até nossas mesas, ele precisou de terra, sol, vento, chuva, e para que esses fenômenos da natureza ocorram são necessários as estrelas, o sistema solar e toda a vida do Universo; ou até mais do que isso: do Pluriverso. As pessoas que plantaram, as que colheram, as que refinaram, as que venderam, as que revenderam, as que cozinharam… e também precisamos de quem produza as panelas, a água é necessária, assim como o gás do fogão e o próprio fogão, ou a lenha. Sempre precisamos de muitos elementos para que algo se manifeste.

Portanto, a refeição é um momento de agradecermos a toda a vida do Universo por esse alimento ter chegado, considerando também aqueles envolvidos. Também é um momento de grande respeito, pois esse alimento poderia estar feliz. O arroz poderia estar feliz lá no arrozal ao sabor do vento, mas nós o cortamos e o tiramos do seu estado natural, do seu local de nascimento, tiramos da natureza para absorvê-lo pelo nosso corpo. Então, como esse corpo retribui a vida que está sendo ceifada para que ele viva? Nós vivemos de outras formas de vida, respeitamos outras formas de vida e retribuímos essas vidas com as nossas atitudes no mundo. Assim, ao nos alimentarmos, fazemos uma reflexão profunda porque é essa alimentação que nos permite praticar o observar profundo, que nos leva à essência do ser.

Na vida em mosteiro, são os monges e monjas que preparam o próprio alimento. Também esse preparo é precedido dessa prece, que ainda será repetida quando estiverem à mesa. A “Prece da Refeição” também é feita nos retiros – respeito e gratidão à vida em cada porção:

Inúmeros trabalhadores,
Inúmeras pessoas,
Inúmeras formas de vida
Foram necessários
Para este alimento
Chegar até mim.
Será que eu o mereço?
Será que tenho tido ações,
Pensamentos e palavras
Que merecem receber esta dádiva?
E que estes alimentos
Sejam um remédio, uma cura
Para meu corpo e mente,
E que eu possa recebê-los
Em gratidão profunda
Por todos os mestres ancestrais
Por todos os seres iluminados
Os guias e professores
Por nossos pais e mães
Avós, todos os seres
Que tornaram possível
Chegarmos até aqui.
Gratidão e respeito à vida,
Que se manifesta em alimento
Que chega a mim
Finalmente, à tarde, há um terceiro período de meditação e Coen Rôshi dedica tempo para entrevistas individuais, que são momentos para que os praticantes possam esclarecer eventuais dúvidas e questionamentos.

Um comentário:

  1. Estou a minha procura! Gostaria de informações sobre como posso fazer parte!

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