segunda-feira, 30 de julho de 2018

Quem ensinou você a pensar? e a arte de desaprender por Monja Coen

Quem ensinou você a pensar?

Mestra Aoyama, a professora de Monja Coen no mosteiro de Nagoya, durante onze anos, contava a história de uma aldeia habitada por ladrões. Hábeis, orgulhavam-se de roubar sem ferir as pessoas.
Um deles, certa, subiu ao mosteiro para meditar. Na entrada, como de costume, os praticantes deixam seus calçados, lado a lado. A mestra notou, no entanto, que aquele homem havia deixado um pé de sapato em uma ponta e o outro longe, no extremo oposto.

Estranhando, perguntou ao praticante o porquê da atitude. “Venho de uma aldeia de ladrões” – explicou o homem – “e sei que, se eu deixar os sapatos juntos, fica mais atrativo e mais fácil para alguém roubá-los”.

Como se sabe, a mentalidade do grupo nos transforma e chegamos a fazer coisas das quais vamos nos arrepender mais tarde. Tanto nas manifestações de rua como no futebol é lastimável. É triste ver, não só as torcidas, mas também em campo, os jogadores se desentendendo. E, mais ainda, vendo gente machucando os outros com brutalidades que provavelmente não aconteceriam se o agressor não estivesse em um grupo.

Como eu me protejo, como ando, onde quer que eu esteja, vestido com a armadura do bem? Não é fácil. É preciso treinar. Voltemos aos estímulos neurais. Temos que buscar estimular a mente, os neurônios, para o compromisso de nunca fazer o mal. Mesmo que sejamos muito provocados, não devemos responder com violência.

No livro A coisa mais preciosa da vida (ed. Palas Athena, 2013), da mestra Aoyama, traduzido pelo templo Sôtô e lançado em 2013, há uma história sobre Buda, um discípulo e uma corda.
Buda caminhava e encontrou um pedaço de corda caído no chão. Pediu ao discípulo que a pegasse e dissesse que cheiro tinha. O discípulo apanhou a corda, aproximou-a do nariz e respondeu que a corda tinha um cheiro insuportável. Seguiram andando e Buda encontrou um pedaço de papel jogado no caminho. Novamente, Buda pediu ao discípulo que sentisse seu odor, e a resposta foi a de que tinha um aroma agradável.
Então, Buda observou:
A corda não era fétida desde o começo, mas tocou algo malcheiroso e ficou com esse odor insuportável. O papel não tinha esse aroma agradável desde o começo, mas, como embrulhou algo perfumado, ganhou esse cheiro bom. Da mesma maneira, vocês devem ter bons amigos. Um bom amigo é tudo na vida, é a maior fortuna que se pode ter. E não se deve esquecer que isso também vale para o mal. É para o que o ditado popular alerta ao avisar: “Antes só do que mal acompanhado”. Uma pessoa que é bastante dócil quando está sozinha pode se transformar e fazer toda sorte de más ações quando está dentro de um grupo repleto de más intenções. É um bom lembrete de quão importante é rodear-se de bons amigos.
Há quem diga que não tem um amigo verdadeiro, que as pessoas estão cada vez mais cruéis, que querem só se aproveitar. Mas existe, sim, o amigo verdadeiro, desde que você seja também um amigo verdadeiro. A partir daí, você vai se conectando com o espaço puro do outro, mas sem expectativas sobre ele. Seja você mesmo verdadeiro e transforme a realidade. O zen é encontrar esse estado por meio da prática da meditação. Silenciar, ouvir as vozes interiores, e até essas se calam. E quando tudo se cala entramos em contato com o sagrado. O sagrado que é silencioso, imenso e que permeia tudo e todos. Não há um só ser, uma só criatura que esteja separada. A ideia da separação é uma distorção da realidade. Somos um só corpo, uma só vida, e temos ligação com tudo o que existe.
A pessoa que fez ou faz coisas ruins não era antes necessariamente assim. Onde foi que ela pegou, como a corda, esse “cheiro” que não é bom? Aquela pessoa não tinha esse “cheiro” no começo, não é? Se nos lembrarmos de cada um de nós mesmos ou de um criminoso terrível, será que não foram bebês bonitos, que riam e alegravam pai e mãe? Onde foi, nessa caminhada, que essa pessoa se perdeu?
Nós também podemos nos perder. Como que, nesta caminhada da vida, em vez de nos perdermos, rumamos ao encontro do sagrado? Significa mantermos a essência do ser. E termos comprometimento. Porque o compromisso é importante, principalmente o que você faz consigo mesmo. Ser um ser do bem. Não se envolver com malefícios nem com nada que possa tirá-lo do Caminho verdadeiro. Você consegue? Você tem conseguido? Qual é o seu compromisso com a sua própria vida?
No budismo, dizemos que há vários diabos e demônios que vêm atrapalhar o praticante. Quando você se compromete e quer seguir esse Caminho, as dificuldades e obstáculos virão. Como você os está superando? Como você põe seu compromisso em prática no dia a dia? Cumprimenta as pessoas na rua? Você sente alegria ao encontrar as pessoas com quem trabalha? Mesmo aquela que não gosta de você? Porque há alguma razão, de alguma forma você a incomoda – mas não precisa ficar incomodado com o incômodo que causa. Se você chega de coração aberto, a pessoa desmonta. Não se trata de forçar um relacionamento de amorosidade, mas da capacidade de olhar para cada ser humano como ser sagrado. Por isso budistas cumprimentam as pessoas com namastê: o sagrado em mim cumprimenta o sagrado em você. Reconhecer a sacralidade em cada criatura, em cada aspecto, em cada grão de areia, em cada molécula. Tudo manifesta esse sagrado. O compromisso com o outro é o de cuidar.

De Osasco, em São Paulo, recebemos este telefonema:
— Monja, eu sempre tento fazer o bem, mas às vezes não consigo.
— E o que você faz?
— Fico triste.
— Ficar triste é o primeiro passo, mas deve-se seguir no esforço para corrigir o erro, buscando perceber onde a gente não foi suficientemente bem e como corrigir. Não adianta ficar só no primeiro passo, porque outras situações ocorrerão e é melhor estar preparado para o que vai acontecer na vida.
— Eu estou preparada; tão preparada que passo até mal.
— Não. Também não dá para ficar preparada demais. Temos que buscar um ponto de equilíbrio. Temos de ser como uma corda de violão afinada: se estiver frouxa, o som não é bonito; se estiver esticada demais, arrebenta. Para esse equilíbrio, recomendo zazen, sentar-se em meditação, afinar o coração, a voz e a vida com a vida do Universo e do sagrado. Nem mais nem menos.

Desaprender

Há quem não acredite, mas é verdade: a gente pode acessar a prática do Caminho e perceber que é possível. Mantenha a memória em alerta, lembre-se da Verdade. Aprecie sua vida. A cada instante, tente apreciá-la assim como ela é. Trabalhar é gostoso. Até o sofrimento, os problemas, as dores que aparecem são seres iluminados e benfazejos, que vêm nos mostrar o caminho. Vivencie esse caminho. Seja zen. Esteja inteiro onde está e no que está fazendo. Aprecie a existência. Nesse sentido, recebemos outra ligação com a dúvida:
— Boa noite, monja. Como é que consigo lidar com os pensamentos indesejados, aqueles que vêm ao longo do dia, recorrentes até? Tenho que dizer “não, isso eu não quero”? Como a gente afasta, ou melhor, melhora esse leque de pensamentos que vem à mente diariamente?
— Vejo que você já está fazendo isso, você já percebeu. Muita gente nem percebe os pensamentos. Você, sim, já se deu conta deles e também os que não são adequados. O que se faz? Respire, volte a presença para onde estiver, para o próprio corpo, para a realidade em que se está, para o que está tocando, e deixe o pensamento ir. Se quisermos brigar com ele, ele ficará recorrente. O ideal é não dar tanta importância a esses pensamentos prejudiciais, mas procurar dar luz aos benéficos. E perceba que eles [os pensamentos inadequados] passam muito rápido pela mente. É a memória deles, o trazê-los de volta que precisamos aplacar. Não traga de volta, não dê tanta importância a pensamentos que sejam prejudiciais e maléficos, como você mesmo disse. E procure dar atenção a outras coisas: o canto dos pássaros, os motores dos carros, sua respiração.
Não se preocupar tanto em controlar os pensamentos. O fato de reconhecer que eles existem já faz da pessoa uma observadora de si mesma. E, quando se está no papel de observador, não se é mais o pensamento; o pensamento apenas ocorre. E o que é mais interessante: nós podemos modificá-lo. Quando ele é prejudicial, nós podemos transformá-lo em benéfico. Isso é o que se chama Buda. Buda é aquele capaz de transformar seus próprios pensamentos. Se o pensamento é mau sobre alguém, por exemplo, apontando as características negativas da pessoa, é preciso procurar ver naquele ser o que há de positivo e benéfico. Então, isso transforma o relacionamento, pois transforma a mente. Se existem obsessões, seja de que espécie elas forem, é importante começar a observá-las para transformá-las em algo benéfico. É um trabalho incessante, sem dúvida. Por isso, a meditação é necessária todos os dias e várias vezes por dia. E a meditação não é só quando se está sentado numa almofada, mas a cotidiana. É tornar-se observador de si mesmo. Não lutar nem brigar com o que aparece na mente, mas transformá-lo – não com raiva, não com violência, mas com acolhida.
Muitas vezes, há pensamentos que parecem vir do sótão, daquele lugar onde se guarda o que não serve, e eles vêm para a sala de visitas. O que fazer? Dar colo, como dizia o monge budista vietnamita Thich Nhat Hanh. Bote no colo aquele pensamento feio: “Pode nanar, nenê; vai nanar, nenê”. E, sem brigar com ele, recolha-o ao seu lugar adequado. É uma prática.
No livro O que a vida me ensinou (ed. Saraiva, 2013), de frei Betto, lê-se a história de um médico que desejava tornar-se monge. Quando foi ao convento pedir para ser aceito como religioso, o superior fez com que lhe entregassem um questionário longo sobre vários assuntos. O médico respondeu a todas as questões, muito habilmente e em pouco mais de uma hora. O abade recebeu o questionário e mandou dizer a ele que voltasse depois de um ano.
Surpreso, o médico perguntou ao emissário por que esperar um ano uma vez que ele tinha respondido tudo. Sim, o emissário concordava, ele havia respondido tudo – e muito bem. Pois, por isso mesmo, o superior dissera que ele precisava desaprender um pouco tudo aquilo que ele sabia tão bem para, então, ingressar no mundo espiritual.
E frei Betto salienta a necessidade de desaprender: “Assim como existem escolas e cursos para aprender, também deveriam existir para ensinar a desaprender inutilidades que precisam ser desaprendidas. Quando falamos em ética, temos que desaprender a esperteza, o espírito de competitividade, o sentimento de vingança, o ímpeto de levar vantagem – tudo isso que nos é imbuído, às vezes, pela cidade e pela sociedade em que estamos, pelo sistema lucrativo de competitividade, disputa, busca de poder, narcisismo. Por mais vigilante que uma pessoa seja, ela fica presa por uma cultura egocêntrica, que é cheia de preconceitos e discriminações”. Muito budista esse raciocínio.
O lema do dalai-lama é “ética para um novo milênio e uma educação ética que independa de religiões”. Tenta-se criar uma ideia de que só é bom quem crê em Deus, mas ele bem lembra que “há pessoas que não creem em Deus, que não creem na Lei da Causalidade, não creem em coisa alguma e são éticas”. E essas pessoas também beneficiam todos ao seu redor. Faz-se o bem pelo bem, não por medalha, mérito ou dinheiro.

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