Pratique o zazen
Muitos ainda perguntam: “O que é o zen?”. Zen é uma palavra originada do sânscrito, língua muito antiga, da Índia, originalmente jhana ou dhiana, que quer dizer “meditar”. Para os chineses, chan; para os japoneses, zen. Ou seja, a prática do zen é a prática da meditação. Na verdade, é um estado de meditação profunda, tão profunda que abandona o “eu menor” e leva ao estado de samadhi, no qual não existe separação entre o ser e o objeto, no qual é possível perceber-se interconectado, interligado, com tudo o que existe. Estado em que passado, futuro e presente ocorrem simultaneamente.
Por isso, no zen-budismo, nem se usa muito a expressão “meditar”, mas “vamos praticar zazen” – que significa sentar-se em zen: o eu observando o próprio eu, percebendo-se interconectado a tudo o que existe. É dessa prática que emerge uma compreensão verdadeira de si mesmo e da realidade, espelhada em uma combinação transformadora, que une o enxergar-se integrado a tudo e a todos ao agir em benefício de quantos forem possíveis.
Coen Rôshi certa noite observou: Temos que ver a realidade. Há coisas certas e coisas injustas. E, em vez de me irritar com as coisas incorretas e injustas, tomo ações e atitudes que possam levar a um caminho de transformação. Certa vez, em uma entrevista, com a presença de vários de meus alunos, perguntaram o que é o zen para mim. Eu já tinha ouvido vários “é o aqui e agora”. Sim, lógico que estamos aqui e agora, mas a vida é passado e futuro. A vida é a soma de todas as experiências vividas que nos trazem para este agora. Portanto, não reclamo do passado, pois ele me trouxe até este momento. E este momento é o ponto de partida para o momento seguinte. Minha transformação é aqui.
Por exemplo, o Zé da Carroça, que muito ajuda a limpar a cidade, trabalha pelo benefício de todos (mas há quem se irrite com uma carroça no trânsito). Ele pode até não ser adepto ou praticante de alguma tradição, talvez o faça apenas pela obrigação da subsistência, mas não será incorreto dizer que a atividade dele é muito mais benéfica ao planeta do que algumas profissões formais. Mas o Zé pode meditar?
Claro! E certamente viveria com mais amor, faria tudo com mais amor, receberia mais amor. O Zé tem pulmões, com seus mágicos alvéolos, que lhe permitem receber o ar vital de toda a Terra. O Zé tem um cérebro humano e seus maravilhosos neurônios! É neles que acontecem as sinapses que podemos aprender a estimular. Para a vida feliz que você (como todos nós) quer, o segredo está nas sinapses que a meditação estimula nos neurônios. E isso está ao alcance de André a Zé. Ao seu alcance, inclusive.
Meditar e iluminar-se não é para seres especiais, raros, mas para pessoas como nós, que temos as nossas ansiedades, nossos medos, nossas aflições. É por isso mesmo que nós procuramos uma prática, um caminho de prática, um caminho de meditação, um caminho de autoconhecimento que nos liberta do “eu menor” e nos põe em contato com o “eu maior”, a nossa essência.
Meditar não requer talento ou dom, mas vontade. Vontade é um conceito permanente no zen, porque, se a disciplina é libertadora, antes de tudo, é disciplina e, por isso, exige. No entanto, é um processo parecido com o dos primeiros tempos de computador: você está lá, em frente à máquina pela primeira vez, e há um cursor na tela que precisa ser movido. Você empurra o mouse, mas o cursor não vai para onde você planejou. Depois de algumas tentativas, porém, seus neurônios já fizeram as sinapses necessárias para coordenar mouse e cursor. Logo, você está manuseando o equipamento sem nem sequer pensar, não é? Do mesmo modo, uma vida que flui plena é recompensa advinda de um esforço que deixou de ser pesado.
O monge japonês Nakamura Taiki tem uma bela história pessoal a respeito desse esforço, que ele mesmo narrou a monges e discípulos brasileiros durante visita ao templo de Monja Coen, o Taikozan Tenzuizenji. Nakamura é um sobrenome japonês e significa “dentro da cidade, do vilarejo”. Taiki quer dizer “uma grande era, época”. Na época da visita, o jovem monge de 25 anos de idade, muito alinhado, com gestual adequado e postura ereta, estava já havia cinco anos no mosteiro de Eiheiji (o mesmo fundado por mestre Dogen), depois de ter treinado no mosteiro de Zuioji, na província japonesa de Ehime. Zuioji nasceu como templo, mas atualmente é um Senmon Sodo, ou seja, mosteiro de treinamento, de práticas austeras e tradicionais, seguindo os ensinamentos de Dogen Zenji.
Quando Taiki chegou a Eiheiji, encontrou um altar com a imagem de Buda posicionada na sala principal. Todos os que cruzavam pela sala tinham de juntar as mãos, palma com palma, e abaixar a cabeça. Os antigos – os senpai (os que vieram antes, os mais antigos) – estavam sempre a postos para corrigir os novatos e ficavam zangados quando ele não juntava as mãos nem baixava a cabeça.
Taiki confessou que, quando passava pela sala e fazia a reverência estava sempre pensando em outra coisa, como o que haveria para o jantar, se conseguiria dormir bastante naquela noite… Questionava ter a obrigação de fazer aquilo, como se fosse uma bobagem.
O tempo foi passando, e ele continuou a fazer o cumprimento para não ouvir nenhum grito ou reprimenda e para não ofender os antigos. “Mas aconteceu uma coisa mágica”, declarou o jovem monge, “aquilo se tornou parte de mim mesmo. Hoje, se não faço reverência, sinto um mal-estar, como se algo estivesse faltando”. E completou, observando que no começo tudo parece muito severo, muito exigente em postura, presença, despertar, mas logo tudo é incorporado e passa a vir de dentro para fora. E é assim em nossas vidas. Para sermos pais, mães, amigos ou colegas de trabalho, é preciso praticar como pai, como mãe, como amigo e como colega. Para que o treinamento nos aperfeiçoe e venha naturalmente.
Coen Rôshi relembrou: Quando comecei a praticar meditação, ainda nos Estados Unidos, havia um monge que nos dizia para sermos “bobos”, que era preciso ser um pouco “bobo” neste mundo, sem medo. Não há necessidade de ser o espertinho. E a prática do zen – você pode não gostar da ideia – é para nos tornarmos mais simples, mais humildes e talvez “bobos”, porque não queremos ser os “espertos”, mas os despertos. Não é a esperteza o que queremos, mas o despertar para uma mente iluminada.
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