sábado, 11 de agosto de 2018

Sementes do carma


Diz o poema do Arrependimento:
Todo carma prejudicial alguma vez cometido por mim, desde tempos imemoriais,
Devido à minha ganância, raiva e ignorância sem limites
Nascido de meu corpo, boca e mente
Agora de tudo eu me arrependo.
Monja Coen

Todos nós somos resultado de carma. Carma significa ação. Ação que marca, que deixa resíduos. Por exemplo, temos marcas no corpo. Na face, as rugas vão se formando ao longo do tempo, até pela maneira de sorrirmos, e viram sulcos mais fundos. Também são sentimentos, ações e palavras que, com a repetição, vão criando esses sulcos. Há também as marcas que podem ser desta vida ou de vidas passadas, das quais nem nos lembramos e não sabemos como se deram. Esse é o significado do verso do poema alguma vez cometido por mim, desde tempos imemoriais: ou seja, em qualquer época da minha vida atual ou de outras vidas.

Buda disse que nem nos céus, nem nas profundezas do mar, nem nas fendas das montanhas, não há um só lugar nesta Terra onde um ser possa escapar das consequências de suas ações. Essa é a chamada Lei do Carma, a Lei da Causalidade, a Lei da Origem Interdependente.


Na Índia antiga, em noites de lua cheia e lua nova, os monges se reuniam para realizar o arrependimento. No zen-budismo, a lua é muito especial, é o símbolo da Iluminação perfeita. Diz-se no zen que a lua que está acompanhada de uma nuvenzinha a passar, cobrindo-a, é mais bela do que a lua cheia e só no céu. A lua nos purifica com a sua luz, e mesmo quando sentimos sua falta, a ausência da visão da lua não significa que tudo não esteja iluminado e na mesma sintonia.

Assim como você, todos têm as suas fases emocionais, e a lua também tem fases. Ainda que esteja invisível, sob uma sombra que a esconde, ela está lá, cintilante, branca e cálida. Às vezes mostra-se só um pouquinho de um lado, de outro, às vezes está pela metade, às vezes inteirinha, mas sempre está ali. E assim deve ser a nossa mente, o nosso coração de ternura, de sabedoria e de respeito. Não importa a fase, o importante é ele estar ali, presente.


Arrependa-se com o compromisso de mudar e você será essa lua cheia, com esse brilho iluminado e iluminador. A noite do arrependimento é aquela em que todos somos iguais, a noite da equidade, a noite da não diferenciação. No arrependimento, entra-se no nível da grande pureza, e esse é o nível da libertação. Torna-se assim uma criança Buda, como um bebê Buda, pleno de alegria, de contentamento pela existência e desenvolvendo a sabedoria. Bebês são assim, estão aprendendo. Então aprendamos juntos a conhecer a mente, as emoções, as sensações, e a usar essa sabedoria para o bem, o bem de todos os seres.


Então, a cada quinze dias, reuniam-se os monges. Xaquiamuni Buda havia criado um código de relacionamento humano a partir da convivência e aqueles que tivessem cometido alguma infração às regras iam à frente de toda a comunidade e declaravam não só suas fraquezas e suas faltas, mas principalmente seu comprometimento de transformação. Esse ritual não se faz mais em público, mas internamente, observando-se a si mesmo; no entanto, até hoje é assim, tanto entre leigos quanto entre monásticos. Repete-se em voz alta o poema:

Todo carma prejudicial alguma vez cometido por mim, desde tempos imemoriais,
Devido à minha ganância, raiva e ignorância sem limites
Nascido de meu corpo, boca e mente
Agora de tudo eu me arrependo.


A prece diz todo carma prejudicial, ou seja, o que não é benéfico. Carma é ação que deixa resíduos, esses vícios que nós temos; às vezes são coisas que herdamos da própria família, como discriminações e preconceitos muito antigos. Nós temos que filtrá-los, não permitir que eles continuem nesta geração nem nas gerações seguintes. E segue: alguma vez cometido por mim, desde tempos imemoriais. Ou seja, tanto do que eu lembro quanto do que eu não lembro. Lembramos às vezes o que fizemos ontem, anteontem, mas pode haver ações de muito tempo atrás, esquecidas, que podem ter ofendido alguém, magoado ou causado uma desarmonia.

Devido à minha ganância, raiva e ignorância. Esses são os três venenos a partir dos quais surgem todas as outras energias prejudiciais, como o ciúme, a inveja, a corrupção, enfim, tudo o que você pode imaginar que não é benéfico. A ganância está no “eu quero, quero, quero, faço qualquer coisa para obter o que eu quero”, “eu quero aquela posição”, “eu quero ser eleito”. Quando vemos essas pessoas que querem tanto chegar ao poder, fazendo qualquer coisa para isso, vemos também que elas não percebem que ao tentar de tudo para chegar lá estão se amarrando, e muitas vezes em relacionamentos que não são benéficos e que ainda vão gerar cobrança e exigirão retorno.


Fica-se cego de raiva, às vezes, pois não se está vendo as coisas como realmente são. Então sai lá de dentro uma energia bem brava que pode fazer muito mal para si e para os outros. Às vezes ela escapa e, então, eu me arrependo, com o compromisso de mudar. E há também o veneno da ignorância. A ignorância da Verdade e do Caminho também pode levar ao cometimento 

de carmas prejudiciais. É a ignorância das quatro nobres verdades dos ensinamentos de Buda. Primeiro, que sofrimento e dificuldades existem; segundo, que tudo tem uma causa; terceiro, que existe um estado de nirvana; e, finalmente, um caminho de prática: o nirvana.

É preciso entender primeiramente que nada é fixo, nada é permanente. A impermanência é uma característica inclusive do eu. Que “eu” é esse que ficou ofendido? Imagine que você abre mão desse eu. E, se alguém joga uma ofensa no mundo, ela não chega até você, fica na boca de quem ofendeu, não vai alcançá-lo. Mas, para tanto, levam-se anos de treinamento. A maioria não consegue logo no começo, então treinamos para nos livrarmos de todo carma prejudicial que já cometemos.

Nascido de meu corpo, boca e mente. Sim, do corpo também, pois gestos e atitudes podem causar desarmonia. E da boca sai a palavra pesada, imprópria. Enfim, ganância, raiva e ignorância causadas por atitudes do corpo, da boca e da mente, porque às vezes não se fala, mas se pensa – e o mais incrível é que nós, seres humanos, somos sensíveis ao que os outros pensam de nós; nós sentimos, não precisa nem falar. Então, você pode modificar a sua maneira de pensar a realidade. Se o pensamento está envenenado pela ganância, pela raiva, pela ignorância, precisa de antídotos. O antídoto da ganância é a doação, a entrega; o da raiva é a compaixão; o da ignorância, a sabedoria.

Agora de tudo eu me arrependo significa tomar essa responsabilidade para si. Gostamos de dizer que a culpa é do outro, mas não há desculpa, somos nós que produzimos o próprio carma. Então, ao reconhecer em si mesmo qualquer um desses venenos, não só é necessário arrepender-se mas principalmente comprometer-se a mudar e se transformar por meio dos antídotos que estão no Caminho.

O arrependimento nos coloca em nível de grande pureza. Buda ensina que, onde quer que você tenha nascido e onde quer que esteja agora, o momento é sempre oportuno para a transformação do seu carma. Você mesmo poder mudar o seu carma é uma experiência incrível!
As ações benéficas constituem o bom carma. É ele que nos coloca juntos, aqui e agora, enquanto você lê: você à procura de um caminho de libertação, ainda que em um momento breve, de paz, de reflexão, um momento de encontro. É o carma benéfico que faz com que estejamos juntos agora nestas páginas. Mas o carma prejudicial nos deixa com angústia, ansiedade, rancor, ele é o que vai nos provocar mal-estares físicos ou mentais e desarmonia nos relacionamentos.

São coisas que nós fizemos, como sementes que plantamos. É como ter nas mãos uma porção de sementes, sem saber exatamente de que plantas são, e distribuí-las, para depois descobrir que algumas não eram o esperado. Assim, acabamos alimentando e cuidando de sementes que não eram do carma benéfico. Cultivamos a raiva e o rancor, brigamos, insultamos os outros no trânsito. Vamos criando um carma que voltará para nós. Também criamos hábitos de falar mais rudemente, grosseiramente, e, sem percebermos, também vamos nos tornando mais grosseiros, quando temos a capacidade humana de sermos mais sensíveis, mais espirituais, mais doces. Tudo é uma questão de treinamento.

Somos resultado de tudo o que já foi. Mas não quer dizer que João foi Paulo em outra vida. Quer dizer que a energia da vida que chega até nós é o resultado de todas as anteriores. Como na genética, no DNA, uma herança que recebemos, como o nariz do pai, as pernas da mãe, o cabelo do avô. Mas isso é o que vemos. E o que não vemos? Também herdamos. Algumas heranças bonitas, outras nem tanto – até bem feias.

E o que fazer com elas? Jogá-las fora? Afastá-las? Refutá-las? Não! A resposta é transmutá-las. Somos capazes de filtrar e transmutar, transformando energias prejudiciais em energias benéficas. Esse é o verdadeiro arrependimento, porque implica assumir o compromisso de mudar daqui para a frente.

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