Como relaxar o eu
“Estudar o Caminho é estudar o eu.
Estudar o eu é esquecer o eu
.Esquecer o eu é ser iluminado por todas as coisas.”
Dogen
Sumário:
É irônico que o eu o faça sofrer de diversas maneiras. Ao levar tudo para o lado pessoal, ao tentar possuir ou se identificar com o que inevitavelmente acaba ou ao se distanciar do todo, você sofre. Mas, quando relaxa o sentido do eu e flui com a vida, fica feliz e satisfeito.
Ao levar o corpo para passear – ou fazer qualquer outra coisa – sem se ater muito à sensação do eu, descobre-se fatos interessantes: o eu costuma ser um pouco retraído e tenso, é muitas vezes desnecessário, e está em constante transformação. O eu é ativado especialmente como reação a oportunidades e ameaças; desejos frequentemente criam um eu antes de o eu criar desejos.
Pensamentos, sentimentos e imagens existem como padrões de informação baseados em padrões de estruturas e atividades neurais. Da mesma maneira, representações do eu e o sentido de ser um eu existem como padrões na mente e no cérebro. A questão não é se esses padrões existem, mas sim qual é a sua natureza. E de fato existe aquele para quem eles apontam – um dono das experiências e agente das ações unificado e permanente?
Os diversos aspectos do eu são baseados em inúmeras redes neurais. Essas redes executam muitas funções não relacionadas com o eu, e as representações do eu dentro delas aparentemente não apresentam nenhuma condição neurologicamente especial.
O eu é apenas uma parte da pessoa. Pensamentos, planos e ações, em sua maioria, não necessitam de um eu para dirigi-los. As redes neurais relacionadas ao eu compreendem somente uma pequena parte do cérebro e uma parte ainda menor do sistema nervoso.
O eu está em constante transformação; no cérebro, toda manifestação do eu é impermanente. Assim como os quadros individuais em um filme criam a ilusão de movimento, as montagens sobrepostas que fluem juntas e então se dispersam criam a ilusão de um eu coerente e contínuo.
O eu se manifesta e muda em função de diversas condições, particularmente de sensações agradáveis ou desagradáveis. E depende também de relacionamentos, incluindo aquele com o mundo. A base mais fundamental para o sentido do eu – a subjetividade inerente à consciência – emerge no relacionamento entre o corpo e o mundo. O eu não tem nenhum tipo de existência independente.
A atividade mental relativa ao eu, que inclui a sensação de ser o objeto da experiência, refere-se a um eu unificado, independente, duradouro, que é essencialmente o dono das experiências e o agente das ações – só que esse eu único não existe. O eu é uma coletânea de representações reais de um ser irreal –como o unicórnio.
O eu aparente é útil para relacionamentos e para uma sensação saudável de coerência psicológica ao longo do tempo. O ser humano carrega a noção do eu porque ela desempenhou funções primordiais de sobrevivência em nossa evolução. É inútil ter aversão ao eu, uma vez que tal sentimento o intensifica. A questão é enxergar através dele e deixá-lo soltar-se e dispersar-se.
O eu se desenvolve pela identificação, possessão, orgulho e distanciamento em relação ao mundo e à vida. Abordamos diversas maneiras de nos desprender disso tudo e, em vez disso, nos concentrar na generosidade, na boa vontade em relação à prosperidade de alguém e em relacionamentos agradáveis e pacíficos com outros seres.
Chegamos agora ao que talvez seja a maior fonte de sofrimento – e, consequentemente, àquilo que é mais importante conhecer: o eu aparente.
Avalie sua vida. Quando você leva as coisas para o lado pessoal fica ávido por aprovação, o que acontece? Você sofre. Quando identifica algo como “eu” ou tenta possuir algo como “meu”, você se abre para o sofrimento, pois todas as coisas são frágeis e inevitavelmente desaparecerão. Quando você se afasta das pessoas e do mundo como “eu”, sente-se isolado e vulnerável – e sofre.
Por outro lado, quando abandona a sutil restrição do eu – quando está imerso no fluxo da vida, e não fora dela, quando o ego e a egolatria passam para segundo plano –, você se sente mais tranquilo e realizado. É isso o que experimentamos quando admiramos um maravilhoso céu estrelado, quando estamos à beira-mar ou quando nasce um filho. Paradoxalmente, quanto menos o eu estiver presente, mais felizes seremos.
A certa altura da vida, todos se fazem a mesma pergunta: Quem sou eu? E ninguém sabe de fato a resposta. O ser é uma questão escorregadia, sobretudo quando é o sujeito que considera a si mesmo um objeto! Vamos, portanto, desenvolver esse assunto intangível com uma atividade prática: levar o corpo para passear. Depois investigaremos a natureza do eu no cérebro. Por último, veremos métodos para relaxar e liberar o “ser em ação” para tornar você mais confiante, tranquilo e unido a todas as coisas.
Leve o corpo para passear
Tente fazer este exercício com a mínima percepção possível do “eu”. Caso não se sinta à vontade, concentre a atenção em sensações físicas básicas, como nos pés ou nas mãos.
Exercício
Relaxe e perceba o corpo respirando.
Estabeleça a intenção de abandonar o eu o máximo possível e observe a sensação que isso lhe causa.
Fique atento à respiração. Seja a respiração. Não há nada mais a fazer, nenhuma necessidade de fazer seja o que for.
Sinta-se o mais seguro possível. Amenize qualquer sensação de ameaça ou aversão. Não há nenhuma necessidade de se mobilizar em busca de proteção.
Sinta a paz subindo e descendo com cada respiração. Não é necessário agarrar-se a prazer algum.
Continue relaxando. Solte-se e liberte-se do eu a cada expiração.
Desfaça-se de qualquer controle sobre a respiração. Deixe o corpo conduzi-la, assim como faz durante o sono.
A respiração continua. A consciência continua. Há uma vasta consciência e pouca sensação do eu. Em paz, sem necessidade do eu. A consciência e o mundo seguem em frente, fazendo tudo certo sem um eu.
Lentamente, observe o entorno. As coisas não precisam do eu.
Explore pequenos movimentos. Mova um dedo ligeiramente, mexa-se na cadeira. A intenção deve conduzir o movimento, e não o eu.
Levante-se devagar. Há a consciência do ato de levantar-se, mas será que existe a necessidade de um eu?
Em pé, mexa-se um pouco. Percepções e movimentos sem um dono ou diretor.
Então, ande sem rumo, lenta ou rapidamente. Sem o eu. Percepções e movimentos sem ninguém que se identifique com a experiência. Faça isso por alguns minutos.
Depois de um tempo, sente-se outra vez. Descanse com a respiração, simplesmente presente, atento. Pensamentos sobre o eu ou pela perspectiva do eu são apenas conteúdos da consciência como qualquer outro, sem nada de especial.
Relaxe e respire. Sensações e sentimentos são apenas conteúdos da consciência que surgem e se dispersam. O eu também surge e se dispersa na consciência, sem problema algum.
Relaxe e respire. Veja o que está presente quando o eu está ausente.
Relaxe e respire. Não existem problemas.
Reflexões
Talvez seja um pouco difícil voltar ao campo do pensamento verbal. Enquanto lê este livro, explore a noção de compreender palavras sem um eu para compreendê-las. Note que a mente é capaz de executar muito bem suas funções sem um eu no comando.
Relembrando o exercício:
Como foi a experiência? Qual é a sensação despertada pelo eu? Agradável ou desagradável? Existe uma sensação de restrição quando o eu ganha força?
É possível realizar diversas atividades físicas e mentais sem muito envolvimento do eu?
O eu foi sempre o mesmo ou aspectos diferentes se manifestaram em momentos diferentes? A intensidade do eu mudou também? Oscilava entre forte e fraca?
O que levou o eu a se transformar? O que o medo, a raiva ou outros pensamentos ameaçadores despertaram? Quais foram os efeitos do desejo? Que consequências os outros enfrentaram ou imaginaram enfrentar? O eu existe de maneira independente ou ele vem à tona e muda de acordo com a situação?
O EU NO CÉREBRO
As experiências que você acabou de ter – de que o eu tem muitos aspectos, é apenas parte de um indivíduo, está em constante mutação e varia conforme a situação – dependem de substratos físicos do eu no cérebro. Pensamentos, sentimentos, imagens etc. existem como padrões de informação representados por padrões de estrutura e atividade neural. Da mesma forma, os diversos aspectos do eu aparente – e a íntima e forte experiência de ser um eu – existem como padrões na mente e no cérebro. A questão não é se esses padrões existem, mas sim qual é a sua natureza. E aquilo que esses padrões parecem defender – um eu unificado, dono permanente das experiências e agente das ações – realmente existe? Ou o eu é como um unicórnio, um ser mítico cujas representações existem, mas que é, na verdade, imaginário?
O eu tem muitas faces
Os diversos aspectos do eu são baseados em estruturas e processos distribuídos pelo cérebro e pelo sistema nervoso e incrustados nas interações do corpo com o mundo. As pesquisas classificam esses aspectos do eu, bem como suas bases neurais, de várias maneiras. Por exemplo, o eu racional (“Estou resolvendo um problema”) tende a surgir principalmente em conexões neurais entre o córtex cingulado anterior (CCA), o córtex pré-frontal e o hipocampo; ao passo que o eu emocional (“Estou chateado”) emerge da amígdala cerebelar, do hipotálamo, do corpo estriado(parte dos gânglios de base) e da parte superior do tronco cerebral (Lewis e Todd 2007). Partes diferentes do cérebro reconhecem seu rosto na foto de um grupo, conhecem sua personalidade, são responsáveis por seus atos e veem as situações de seu ponto de vista, e não do dos outros (Gillihan e Farah 2005).
O eu autobiográfico (Damásio 2000) incorpora o eu racional e um pouco do eu emocional e produz a sensação do ser com um passado e um futuro exclusivos. O eu nuclear envolve um sentimento oculto e em grande parte não verbal do ser que tem pouca noção de passado e futuro. Se o córtex pré-frontal – que fornece a maioria do substrato neural do eu autobiográfico – fosse prejudicado, o eu nuclear permaneceria, embora com pouca noção de continuidade quanto a passado e futuro. Por outro lado, se as estruturas subcorticais e do tronco cerebral, dos quais o eu nuclear depende, sofressem lesões, tanto o eu nuclear como o eu autobiográfico desapareceriam, o que nos faz supor que o eu nuclear é a base neural e mental do eu autobiográfico (Damásio 2000).
Quando a mente está bem tranquila, o eu autobiográfico parece um tanto ausente, o que presumivelmente corresponde a uma desativação relativa do substrato neural. As meditações que acalmam a mente, como as práticas de concentração que vimos no capítulo anterior, aumentam o controle consciente sobre esse processo de desativação.
O eu como objeto surge quando deliberadamente pensamos em nós mesmos – “Será que como pizza ou comida chinesa hoje à noite? Como posso ser tão indeciso?” – ou quando associações conosco vêm à cabeça espontaneamente. Essas representações são assuntos dentro de uma narrativa que, com o passar do tempo, vai juntando momentos do eu em uma espécie de filme de um eu aparentemente coerente (Gallagher 2000). Essa autorreferência se apoia em estruturas corticais mediais (Farb et al. 2007), na junção dos lobos temporal e parietal e na extremidade posterior do lobo temporal (Legrand e Ruby 2009).
Essas regiões do cérebro também executam inúmeras outras funções (como pensar em alguém, fazer avaliações), por isso não devem ser relacionadas especificamente com o eu (Legrand e Ruby 2009). As representações do eu passam por elas misturadas a todos os tipos de conteúdo mental, colidindo entre si como galhos e folhas na correnteza, aparentemente sem nenhuma condição especial do ponto de vista neurológico.
Fundamentalmente, o eu como objeto é a noção elementar de ser aquele que vivencia experiências. A consciência tem uma subjetividade inerente, a localização de uma perspectiva particular (por exemplo, de meu corpo, não do seu). Essa localização é fundamentada no compromisso do corpo com o mundo. Por exemplo, quando você olha ao redor para examinar um ambiente, o que vê está especificamente relacionado com seus próprios movimentos. O cérebro relaciona inúmeras experiências para encontrar a característica comum: a vivência delas em um corpo específico. De fato, a subjetividade surge da distinção básica entre este corpo e esse mundo; no sentido mais amplo, a subjetividade é gerada não apenas no cérebro, mas também nas contínuas interações que o corpo tem com o mundo (Thompson 2007).
Então, o cérebro relaciona momentos de subjetividade para criar um sujeito aparente que – ao longo do desenvolvimento, da infância à fase adulta – é elaborado e disposto em camadas pela maturação do cérebro, particularmente regiões do córtex pré-frontal (Zelazo, Gao e Todd 2007). No entanto, na subjetividade não há sujeito inerente; em práticas avançadas de meditação, é encontrada uma mera consciência sem um sujeito (Amaro 2003). A consciência requer subjetividade, mas não necessita de um sujeito.
Em resumo, do ponto de vista neurológico, a sensação diária de ser um eu unificado é uma total ilusão: o “eu” aparentemente coerente e sólido é, na verdade, construído a partir de muitos subsistemas e seus respectivos subsistemas, sem um centro estabelecido, e a ideia fundamental de que existe um sujeito da experiência é produzida por inúmeros e discrepantes momentos de subjetividade.
O eu é apenas uma parte da pessoa
Uma pessoa é um corpo-mente humano, um sistema autônomo e dinâmico que é resultado da cultura e do mundo natural (Mackenzie 2009). Você é uma pessoa, eu sou uma pessoa. Pessoas têm histórias, valores, planos. São moralmente condenáveis e colhem aquilo que semeiam. Continuam a existir desde que o corpo esteja vivo; e o cérebro, razoavelmente intacto. Porém, como já vimos, conteúdos mentais relacionados a nós mesmos não dependem de uma condição neurológica específica e são apenas parte do fluxo contínuo da atividade mental. Qualquer aspecto do eu que esteja momentaneamente ativo envolve apenas uma pequena fração das muitas redes do cérebro (Gusnard et al. 2001; Legrand e Ruby 2009). Mesmo os aspectos do eu que estão armazenados na memória explícita e implícita utilizam somente uma fração do depósito de informações a respeito do mundo, do processo perceptivo, da ação prática etc. O eu é apenas uma parte da pessoa.
Além disso, a maioria das facetas de uma pessoa pode se manifestar sem a orientação de um eu. A maior parte dos pensamentos, por exemplo, surge espontaneamente. No dia a dia, todos nós executamos atividades físicas e mentais sem um eu para fazê-las acontecer. Na verdade, quanto menos houver de si, melhor, uma vez que isso melhora o desempenho de muitas tarefas e funções emocionais (Koch e Tsuchiya 2006; Leary, Adams e Tate 2006). Até mesmo quando parece que o eu tomou uma decisão consciente, essa escolha costuma ser o resultado de fatores inconscientes (Galdi, Arcuri e Gawronski 2008; Libet 1999).
A atenção, em especial, não depende de um eu. Aspectos do eu aparecem e se dispersam, mas a atenção permanece como um campo da consciência independente de suas vicissitudes. Para ter essa experiência, fique atento ao que acontece um ou dois segundos depois de ouvir ou ver algo novo. Primeiro, a pura percepção cristaliza-se na consciência, sem nenhuma sensação de um ser, um eu que desempenhe a ação de perceber; depois, é possível observar uma sensação crescente de si ligada à percepção, sobretudo se for algo pessoalmente importante. Mas é bastante evidente que a consciência pode cumprir suas funções sem um sujeito.
Costumamos supor que a consciência tem um sujeito, uma vez que ela envolve subjetividade, como vimos acima, e o cérebro relaciona momentos desse tipo para encontrar um sujeito aparente. Porém, a subjetividade é apenas uma forma de estruturar a experiência; não é uma entidade, um ser do além espreitando através de nossos olhos. Na verdade, observar a própria experiência mostra que o eu – o sujeito aparente – muitas vezes vem à tona após o fato. O eu muitas vezes é como alguém que corre atrás de um desfile já começado, gritando: “Olhe o que eu criei! Olhe o que eu criei!”
O eu em constante mutação
Assim como diferentes partes do eu se apresentam e depois abrem caminho para outras partes, o mesmo acontece com os momentâneos circuitos neurais que as tornam possíveis. Se seus fluxos de energia pudessem ser vistos como um jogo de luzes, um espetáculo extraordinário se movimentaria continuamente em sua cabeça. No cérebro, toda manifestação do eu é impermanente. O eu é construído e desconstruído o tempo todo.
O eu parece coerente e contínuo em virtude da maneira pela qual o cérebro forma a experiência consciente: imagine mil fotografias sobrepostas umas às outras, cada uma levando alguns segundos para revelar uma imagem clara e então desvanecer-se. Essa construção da experiência cria a ilusão de integração e continuidade, assim como 22 quadros por segundo geram a impressão de movimento em um filme. Consequentemente, vivemos “agora” não como um lapso de tempo no qual cada instante aparece e acaba abruptamente, mas como um período de um a três
segundos com começo e fim esmaecidos (Lutz et al. 2002; Thompson 2007).
Não se trata do fato de termos um eu, mas de sermos um eu em ação. Como disse Buckminster Fuller: “Pareço ser um verbo”.
O eu depende da situação
Em qualquer momento, as partes do eu que estão presentes dependem de muitos fatores, como herança genética, histórico pessoal, temperamento e situações. Particularmente, o eu depende muito da sensação provocada pelas experiências. Quando a experiência é neutra, o eu tende a se misturar com o que se passou. Mas, quando surge algo bem agradável ou desagradável – como um e-mail interessante ou uma dor física –, o eu logo se mobiliza no fluxo que vai da sensação ao desejo incontrolável e deste ao apego. O eu se forma em torno de fortes desejos. O eu cria um desejo ou o desejo cria um eu?
O eu também está muito associado ao contexto social. Experimente caminhar sem direção: em geral, não há muita sensação do eu. Mas, se encontrar um velho conhecido, em segundos muitas partes do eu virão à tona, como lembranças e experiências compartilhadas – ou a preocupação com a aparência.
O eu nunca se manifesta por conta própria. Ele se desenvolveu ao longo de muitos milhões de anos, moldado pelas reviravoltas da evolução (Leary e Buttermore 2003). Então, hoje, a qualquer momento, ele surge por meio de atividades neurais que dependem de outros sistemas corporais, e esses sistemas dependem de uma rede de fatores de sustentação que vão desde mercearias até as aparentemente arbitrárias, mas notavelmente providenciais, constantes físicas deste universo, que propiciam as condições para a vida, como as estrelas, os planetas e a água. O eu não tem existência inerente, incondicional, absoluta, exceto pela rede de fatores que lhe dá origem (Mackenzie 2009).
O eu é como um unicórnio
Representações relacionadas ao eu são abundantes na mente e, por conseguinte, no cérebro. Aqueles padrões de informação e atividade neural são, sem dúvida, reais. Contudo, aquele para quem eles apontam, explícita ou implicitamente – um eu unificado, permanente, independente, que é o indispensável dono das experiências e agente das ações – simplesmente não existe. No cérebro, as atividades relacionadas ao eu são distribuídas e combinadas, e não unificadas; elas são variáveis e passageiras, não permanentes, e dependem de condições inconstantes, entre as quais as interações que o corpo tem com o mundo. Não é porque temos uma sensação do eu que o somos. O cérebro junta momentos heterogêneos do eu em ação e de subjetividade, formando uma ilusão de continuidade e coerência. O eu é, de fato, um personagem fictício. Às vezes, é bom agir como se fosse real, como veremos a seguir. Interprete o papel do eu quando for necessário, mas tenha sempre em mente que quem você é como pessoa – dinamicamente entrelaçado com o mundo – é mais vivo, interessante, capaz e extraordinário do que o eu.
UM EU (APARENTE) TEM SUA UTILIDADE
Um eu aparente pode ser bom para algumas coisas. É uma maneira prática de distinguir uma pessoa da outra. Ele dá uma sensação de continuidade ao caleidoscópio de experiências da vida, ligadas umas às outras por parecerem acontecer a um eu particular. Acrescenta entusiasmo e comprometimento aos relacionamentos – “Eu te amo” é uma declaração que tem muito mais impacto do que “O amor se manifesta aqui”.
A noção do eu está presente no nascimento de forma rudimentar (Stern 2000), e as crianças normalmente desenvolvem estruturas substanciais do eu aos 5 anos; do contrário, seus relacionamentos serão bastante prejudicados. Processos relacionados ao eu são conectados no cérebro por bons motivos. Eles ajudaram nossos antepassados a prosperar em bandos de caça e colheita cada vez mais sociais, nos quais as dinâmicas interpessoais tiveram grande papel na sobrevivência; perceber o eu nos outros e expressar o próprio eu com habilidade era muito útil para formar alianças, acasalar-se e manter as crianças vivas para passar seus genes adiante. A evolução dos relacionamentos promoveu a evolução do eu, e vice-versa; os benefícios dele foram, assim, um fator na evolução do cérebro. O eu foi costurado no DNA humano por vantagens reprodutivas lentamente acumuladas durante centenas de milhares de gerações.
Não se trata de defendê-lo ou justificá-lo. Mas também não devemos depreciá-lo ou suprimi-lo. Não devemos tornar o eu algo especial – ele é simplesmente um padrão de manifestação mental que não é, de modo algum, diferente ou melhor do que qualquer outro objeto mental. Quando você usar os métodos a seguir, não estará resistindo ao eu ou tornando-o um problema. Estará apenas vendo através dele e incentivando-o a relaxar, a desanuviar-se. E o que fica disso? Muita franqueza, sabedoria, valores e virtudes, além de uma suave e doce alegria.
RENUNCIAR À IDENTIFICAÇÃO
Uma maneira pela qual o eu se desenvolve é equiparando-se às coisas, identificando-se com elas. Infelizmente, quando você se identifica com algo, toma o destino dele como seu – e tudo neste mundo um dia chega ao fim. Então, fique atento a como você se identifica com posições, objetos
e pessoas. Uma análise tradicional é fazer perguntas do tipo: Eu sou esta mão? Eu sou esta crença? Eu sou este eu? Eu sou esta consciência? Você pode responder a cada pergunta explicitamente, como: Não, eu não sou esta mão.
Esteja consciente, sobretudo, quanto a identificar-se com funções executivas (monitorar, planejar, escolher). Note com que frequência o cérebro faz planos e escolhas sem grande envolvimento do eu, como enquanto dirigimos para o trabalho. Fique atento também quanto a identificar-se com a consciência; deixe que ela surja sem precisar se identificar com ela ou instruí-la.
Considere todas as formas de se referir ao eu como apenas mais objetos mentais – pensamentos como outros quaisquer. Lembre-se: Eu não sou meus pensamentos. Não sou esses pensamentos do eu. Não se identifique com o eu! Não use palavras como “eu” e “meu” mais do que o necessário. Tente passar um período determinado de tempo, como uma hora no trabalho, sem usá-las de jeito nenhum.
Deixe as experiências fluírem pela consciência sem se identificar com elas. Se essa posição fosse verbalizada, seria assim: Ver é acontecer. Existe sensação. Pensamentos surgem. Um senso de eu se manifesta. Mexa-se, planeje, sinta e pense com o mínimo possível de referência ao eu.
Estenda essa consciência aos filminhos que passam no simulador da mente. Note como uma presunção do eu está embutida na maioria desses filmes, mesmo quando o eu não é um personagem evidente. Isso reforça o eu enquanto os neurônios disparam e se conectam em suas simulações. Em vez disso, cultive a ideia de que os acontecimentos podem ser percebidos da perspectiva de um corpo-mente particular sem necessidade de haver um eu que os perceba.
GENEROSIDADE
O eu também se desenvolve pela possessividade. Ele é como um punho cerrado: quando abrimos a mão para dar, não há mais eu.
Há tanto a oferecer nesta vida, e isso nos proporciona muitas oportunidades de liberar o eu. Por exemplo, podemos doar tempo, auxílio, contribuições, paciência, acordo, perdão. Qualquer tipo de préstimo – inclusive criar uma família, importar-se com os outros e muitos tipos de trabalho – envolve generosidade.
A inveja – e seu primo próximo, o ciúme – é um grande impedimento para a generosidade. Perceba o sofrimento presente nesse sofrimento, e veja como ele é nocivo a você. A inveja, na verdade, ativa algumas das redes neurais envolvidas na dor física (Takahashi et al. 2009). De maneira compassiva e gentil, lembre-se de que você ficará bem mesmo que outras pessoas tenham fama, dinheiro, um parceiro incrível – e você não.
Para se livrar das garras da inveja, envie compaixão e bondade para as pessoas de quem sente inveja. Certa vez, num retiro de meditação, sentia inveja de algumas pessoas e acabei encontrando uma paz surpreendente ao fazer este pedido por elas: Que vocês tenham todo o sucesso que eu não tenho.
Observe também percepções, pensamentos, emoções e outros objetos mentais e pergunte-se: Isso tem um dono? Então veja a natureza das coisas: Não, não tem. É inútil tentar possuir a mente; ninguém é dono dela.
HUMILDADE SAUDÁVEL
Talvez mais do que tudo, o eu prospera pela presunção, enquanto seu antídoto é a humildade saudável. Ser humilde significa ser natural e despretensioso, e não ser envergonhado, inferior ou capacho dos outros. Trata-se de não se colocar acima dos outros. A sensação de humildade é pacífica. Não é preciso esforçar-se para impressionar as pessoas, e ninguém estará em desacordo conosco quando formos pretensiosos e intolerantes.
Seja bom com você mesmo
Paradoxalmente, cuidar bem de si envolve humildade, pois as redes do eu no cérebro são ativadas quando nos sentimos ameaçados ou desamparados. Para reduzir essa ativação, garanta que suas necessidades essenciais sejam atendidas de forma adequada. Por exemplo, todos nós precisamos nos sentir queridos. Empatia, elogios e o amor dos outros – sobretudo na infância – são internalizados em redes neurais que sustentam sentimentos de confiança e valor. Se não recebermos muito disso ao longo dos anos, provavelmente acabaremos com um vazio no coração.
O eu fica muito ocupado com esse vazio, tentando preenchê-lo com petulância ou fazendo um “conserto” paliativo. Além de irritar os outros – e assim conquistando menos empatia, elogios e amor do que nunca –, essas estratégias são inúteis, já que não tratam da questão fundamental.
Em vez disso, preencha seu coração absorvendo o que é bom (ver capítulo 4), um tijolo de cada vez. Quando eu era mais jovem, o vazio do meu coração era imenso. Assim que percebi que ele devia e podia ser preenchido, fui procurar provas do meu valor, como o amor e o respeito dos outros e minhas boas qualidades e conquistas. Então, por alguns segundos, incorporei a experiência. Depois de várias semanas e muitos tijolos, comecei a me sentir diferente; em poucos meses, havia uma sensação de crescimento pessoal muito maior. Hoje, muitos anos e milhares de tijolos depois, o vazio de meu coração está bem preenchido.
Não importa o tamanho de seu vazio, cada dia lhe dá pelo menos alguns tijolos para completá-lo. Preste atenção às coisas boas a respeito de você, e na atenção e no reconhecimento dos outros
e então absorva-os. Um único tijolo não elimina o vazio, mas, se você persistir, dia após dia, tijolo após tijolo, conseguirá preencher esse espaço.
Assim como muitas práticas, ser bom consigo é uma espécie de jangada para atravessar o rio do sofrimento – para usar uma metáfora de Buda. Chegando ao outro lado, você não precisará mais da jangada. Terá desenvolvido sua capacidade interior a ponto de não ter mais de procurar provas de seu valor.
Não se preocupe com a opinião alheia
Evoluímos de modo a dar grande importância à nossa reputação, uma vez que esta influenciava a decisão de outros membros do bando em querer ajudar ou prejudicar as chances de sobrevivência de um indivíduo (Bowles 2006). É completamente humano querer e buscar o respeito e a estima dos outros. Ficar restrito ao que os outros pensam, porém, é outra história. Nas palavras de Shantideva (1999, p. 113):
Por que devo me alegrar quando as pessoas me elogiam?
Haverá outros para desdenhar e criticar.
E por que ficar desesperado quando culpado,
Já que haverá outros para pensar bem a meu respeito?
Considere quanto tempo você passa pensando – mesmo da maneira mais sutil, atrás do simulador – sobre o que os outros acham de você. Tenha consciência do que faz para conquistar admiração e elogios. Em vez de agir assim, foque em apenas fazer o melhor possível. Pense na virtude, na benevolência e na sabedoria: se suas atitudes se basearem nisso, é praticamente tudo o que se pode fazer. E isso é muito!
Você não tem de ser especial
Acreditar que você precisa ser especial para merecer amor e apoio cria um grande obstáculo que exige muito esforço e tensão para ser transposto – dia após dia após dia. E ainda o enche de autocrítica e sentimentos de incapacidade e inutilidade quando não consegue o reconhecimento que tanto deseja. Em lugar disso, experimente desejar-se o bem assim: Que eu seja amado sem ser especial. Que eu colabore sem ser especial.
Considere renunciar a ser especial – e até importante e admirado. A renúncia é a antítese do apego, e, portanto, um caminho radical para a felicidade. Diga mentalmente frases como estas e perceba o que despertam em você: Desisto de ser importante. Renuncio a buscar aprovação. Sinta a paz nessa entrega.
Ame a pessoa que você é, assim como se ama alguém querido. Mas não ame o eu ou qualquer outro mero objeto mental.
LIGADO AO MUNDO
A sensação do eu aumenta quando nos distanciamos do mundo. Por isso, ao aprofundar sua ligação com o mundo, reduzirá a percepção do eu.
Para viver, para manter seu metabolismo, o corpo deve estar ligado ao mundo por meio de contínuas trocas de energia e substâncias. De modo semelhante, o cérebro não é fundamentalmente separado do restante do corpo, que o alimenta e o protege. Portanto, no fim das contas, o cérebro está ligado ao mundo (Thompson e Varela 2001). E, como já vimos várias vezes, a mente e o cérebro formam um sistema integrado. Assim, a mente e o mundo estão intimamente relacionados.
Você pode aprofundar essa identificação de diversas maneiras:
Reflita sobre os caminhos percorridos pelos alimentos, pela água e pela luz do sol que mantêm o corpo. Considere-se como um animal em sua dependência do mundo natural. Dedique um tempo à natureza.
Preste atenção ao aspecto espacial nos ambientes em que vive, como o espaço vazio na sala de casa ou o espaço que os carros percorrem durante o trajeto para o trabalho. Isso trará naturalmente a consciência em relação ao todo.
Pense além. Por exemplo, ao abastecer o carro, considere a grande rede de fatores que contribuem para a construção do eu aparente, como o posto de gasolina, a economia mundial e até o plâncton e as algas soterradas em óleo. Perceba que essas causas dependem de uma rede ainda mais vasta que abrange o sistema solar, nossa galáxia, outras galáxias e os processos físicos do campo material. Sinta a verdade irrefutável de que sua origem e subsistência está ligada a todo o universo. A Via Láctea existe por causa de um grupo maior de galáxias, o Sol existe por causa da Via Láctea, e você existe graças ao Sol – então, de certa maneira, você existe por causa de galáxias a milhões de anos-luz daqui.
Se conseguir, pense até o último nível, que é a totalidade das coisas. Por exemplo, o mundo ao seu alcance, incluindo seu corpo e sua mente, é sempre uma coisa só. A qualquer momento, você pode perceber essa totalidade. As partes que o compõem se transformam constantemente. Cada uma delas se desenlaça, se decompõe e se dispersa. Sendo assim, nenhuma parte pode ser uma fonte confiável e permanente da verdadeira felicidade, incluindo o eu. Mas o todo como todo nunca muda. O todo nunca se apega nem sofre. A ignorância encolhe a totalidade para dentro do eu. A sabedoria reverte esse processo, esvaziando o eu para dentro do todo.
É um maravilhoso paradoxo que, à medida que o aspecto individual – como o eu – se torna cada vez mais incerto e sem fundamento, a soma de todas as coisas pareça cada vez mais segura e confortante. Conforme esse falta de fundamento se torna mais clara, aquilo que é aparentemente individual parece mais uma parede de neblina que vai cair se alguém se apoiar nela. No início, isso é bem perturbador. Mas então você percebe que o céu em si – a totalidade – é o que está o sustentando. Você está andando pelo céu porque você é o céu. Sempre foi assim. Você e todas as pessoas têm sido o céu todo o tempo.
LIGADO À VIDA
Certa vez, um amigo meu foi a um retiro de meditação num mosteiro em Burma, onde fez votos de não matar intencionalmente qualquer ser vivo, entre outros. Após algumas semanas, não conseguia meditar direito. Na mesma época, o “banheiro” próximo à sua barraca começou a incomodá-lo. Era uma fossa, e, após usá-la, ele tinha de limpar a área ao redor do buraco com água, mas geralmente havia formigas ali, que eram levadas pela água. Ele perguntou ao abade se aquilo estava certo. “Não”, respondeu o abade, “seu voto não foi esse”. Meu amigo levou a sério o comentário do abade e passou a limpar o banheiro com muito mais cuidado. E, talvez não por acaso, sua meditação se aprofundou dramaticamente.
Com que frequência colocamos nossa conveniência acima da vida de outro ser, mesmo uma formiga no banheiro? Isso não é deliberadamente cruel, mas é egoísta. Olhe a criatura nos olhos – o mosquito, o rato – e reconheça que ele quer viver, assim como você. Como será a sensação de ser morto pela conveniência de alguém?
Se quiser, adote a prática de nunca matar para sua conveniência, para sentir-se mais conectado com toda a vida, como uma criatura em harmonia com outros seres. Assim estará tratando o mundo como uma extensão sua, e não se prejudicar implicará não prejudicar o mundo.
Da mesma forma, ser bom com o mundo é ser bom consigo mesmo. À medida que o eu começa a relaxar e se abandonar, é possível pensar em como viver. Uma vez, num retiro, tive uma sensação tão forte de tudo ser um todo que comecei a me desesperar com a completa irrelevância de minha ínfima parte nisso. Minha vida perdeu a importância. Após uma noite maldormida, sentei-me do lado de fora do refeitório antes do café da manhã, perto de um pequeno córrego, observando uma corça e seu filhote que pastavam sob as árvores. Comecei a sentir muito profundamente que cada ser vivo tem sua natureza e seu lugar no todo. A corça lambia e aninhava o filhote. Claramente, ela pertencia àquele lugar; mais cedo ou mais tarde morreria e desapareceria, mas nesse meio-tempo prosperava e contribuía à sua maneira. Insetos e pássaros agitavam as folhas caídas: todos se movimentavam, produzindo benefícios para o todo de alguma maneira.
Da mesma forma que cada um daqueles animais, eu também tinha meu lugar e dava minhas contribuições. Nenhum de nós era importante, mas não havia mal em eu ficar por ali, prosperar, relaxar e ser o todo – ser o todo representado como uma parte, ser uma parte representando o todo.
Um tempo depois, um esquilo cinza e eu nos observamos a menos de 1 metro de distância. Era natural querê-lo bem, desejar que encontrasse alimento e escapasse das corujas (e, na complexidade da floresta, também querer bem à coruja e que ela encontrasse um esquilo para matar sua fome). Ficamos nos olhando por um tempo curiosamente longo, e eu realmente desejei o melhor para aquele esquilo. Então, outra coisa ficou clara: eu também era um organismo, assim como o esquilo. Não era problema nenhum desejar o bem para mim mesmo, exatamente como a outro ser vivo.
Não há problema em querer o bem para si, da mesma forma que para os outros seres. É certo fazer o bem de acordo com a sua natureza, com um cérebro humano, indo o mais longe possível no caminho da felicidade, do amor e da sabedoria.
O que permanece quando o eu se dispersa, mesmo que temporariamente? O ato devotado de contribuir e o desejo de se desenvolver e prosperar como um animal humano entre 6 bilhões. Ser saudável e forte e viver por mais muitos anos. Ser atencioso e gentil. Despertar, permanecendo como uma consciência amorosa, radiante e vasta. Sentir-se protegido e apoiado. Ser feliz, à vontade, sereno e satisfeito. Viver e amar em paz.
capítulo 13: PONTOS-CHAVE
É irônico que o eu o faça sofrer de diversas maneiras. Ao levar tudo para o lado pessoal, ao tentar possuir ou se identificar com o que inevitavelmente acaba ou ao se distanciar do todo, você sofre. Mas, quando relaxa o sentido do eu e flui com a vida, fica feliz e satisfeito.
Ao levar o corpo para passear – ou fazer qualquer outra coisa – sem se ater muito à sensação do eu, descobre-se fatos interessantes: o eu costuma ser um pouco retraído e tenso, é muitas vezes desnecessário, e está em constante transformação. O eu é ativado especialmente como reação a oportunidades e ameaças; desejos frequentemente criam um eu antes de o eu criar desejos.
Pensamentos, sentimentos e imagens existem como padrões de informação baseados em padrões de estruturas e atividades neurais. Da mesma maneira, representações do eu e o sentido de ser um eu existem como padrões na mente e no cérebro. A questão não é se esses padrões existem, mas sim qual é a sua natureza. E de fato existe aquele para quem eles apontam – um dono das experiências e agente das ações unificado e permanente?
Os diversos aspectos do eu são baseados em inúmeras redes neurais. Essas redes executam muitas funções não relacionadas com o eu, e as representações do eu dentro delas aparentemente não apresentam nenhuma condição neurologicamente especial.
O eu é apenas uma parte da pessoa. Pensamentos, planos e ações, em sua maioria, não necessitam de um eu para dirigi-los. As redes neurais relacionadas ao eu compreendem somente uma pequena parte do cérebro e uma parte ainda menor do sistema nervoso.
O eu está em constante transformação; no cérebro, toda manifestação do eu é impermanente. Assim como os quadros individuais em um filme criam a ilusão de movimento, as montagens sobrepostas que fluem juntas e então se dispersam criam a ilusão de um eu coerente e contínuo.
O eu se manifesta e muda em função de diversas condições, particularmente de sensações agradáveis ou desagradáveis. E depende também de relacionamentos, incluindo aquele com o mundo. A base mais fundamental para o sentido do eu – a subjetividade inerente à consciência – emerge no relacionamento entre o corpo e o mundo. O eu não tem nenhum tipo de existência independente.
A atividade mental relativa ao eu, que inclui a sensação de ser o objeto da experiência, refere-se a um eu unificado, independente, duradouro, que é essencialmente o dono das experiências e o agente das ações – só que esse eu único não existe. O eu é uma coletânea de representações reais de um ser irreal –como o unicórnio.
O eu aparente é útil para relacionamentos e para uma sensação saudável de coerência psicológica ao longo do tempo. O ser humano carrega a noção do eu porque ela desempenhou funções primordiais de sobrevivência em nossa evolução. É inútil ter aversão ao eu, uma vez que tal sentimento o intensifica. A questão é enxergar através dele e deixá-lo soltar-se e dispersar-se.
O eu se desenvolve pela identificação, possessão, orgulho e distanciamento em relação ao mundo e à vida. Abordamos diversas maneiras de nos desprender disso tudo e, em vez disso, nos concentrar na generosidade, na boa vontade em relação à prosperidade de alguém e em relacionamentos agradáveis e pacíficos com outros seres.
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