quinta-feira, 9 de agosto de 2018

SAMKHYA - O FUNDAMENTO TEÓRICO DO YOGA ANTIGO

SAMKHYA - O FUNDAMENTO TEÓRICO DO YOGA ANTIGO



SAMKHYA:

O FUNDAMENTO TEÓRICO DO YOGA ANTIGO

Literalmente, Samkhya quer dizer número; e possui diversos significados, tais como: enumeração, busca, análise, cálculo, ato de examinar, discriminação e investigação das categorias da existência. As duas características principais desse sistema são a ordem de classificação de seus 24 princípios (tattwas) e a dissociação, ou discriminação, entre o Purusha (Homem) e a Prakriti (Natureza). Em síntese, o Samkhya é classificado como uma filosofia naturalista, já que toda a sua estrutura se fundamenta nas leis da natureza.

As origens do Samkhya, segundo o historiador Mircéa Éliade, “antes dele ter se transformado num darshana, devem ser procuradas na análise dos elementos constitutivos do homem, com o objetivo de distinguir dentre aqueles que o abandonam na morte e aqueles que o acompanham para além dela”. (Yoga Inmortalidad y Libertad, pág. 22). Um estudo semelhante encontra-se no Satapatha Brahmana (X, 1,3,4), que divide o ser humano em três partes imortais e três partes mortais. Essa filosofia pode ser sintetizada como uma tentativa do homem em compreender a sua existência, explicando-a segundo leis naturais; e na dissociação entre algo que é mutável e aquilo que permanece imutável em todos os seres e por trás de todos os processos da Natureza.

Outras ideias remotas do Samkhya podem ser encontradas em textos do período védico. A divisão do Universo entre Purusha e Prakriti é mencionada no Rig Veda (X, 90.5), no qual o primeiro tem caráter masculino e o segundo, feminino. Alguns hinos do Rig Veda (X, 129, 221) falam sobre a evolução do Universo de um modo semelhante à evolução do Sámkhya Clássico. Os três gunas são citados no Atharva Veda (X, 8, 43): “os homens que possuem a sabedoria conhecem aquele ser, o Purusha, que reside no lótus de nove portas (o corpo humano), revestido pelas três qualidades (gunatraya)”.

Também podemos encontrar descrições em algumas Upanishads; ainda, em várias partes do Mahabhárata, tais como na Bhagavad Gita, na Anu Gítá e no Mokshadharma (nos quais o Sámkhya está intimamente ligado ao Yoga). Na maioria desses textos, entretanto, o Sámkhya é definido, em linhas gerais, como qualquer tipo de conhecimento filosófico.

Segundo as fontes hindus, o Sámkhya foi sistematizado, pela primeira vez, por Kapila, personagem tradicionalmente muito conhecido, porém historicamente contraditório. Nas escrituras que o citam, por exemplo, a Swetaswatara Upanishad (V,2), ele é identificado com o nome de Hiranyagarbha, um dos nomes de Brahma. Ainda, no mesmo texto, diz-se que ele é uma personificação de Vishnu. E mais, noutras Upanishads, Kapila é colocado como sendo o próprio Shiva, o criador do Yoga.

A obra mais antiga sobre o Sámkhya é um livro chamado Sasti Tantra, classificado como o ensinamento dos seis tópicos ou, ainda, como o livro das sessenta frases. Entretanto, tais registos foram perdidos no tempo e hoje não passam de mitos.

Esse é o Samkhya Pré-Clássico.

Um dos livros mais famosos é o Samkhya Karika (significa, literalmente, estrofes do discernimento) de Ishwarakrishna. A maioria dos pesquisadores concorda que sua redação é do século II d.C. Nos sutras finais dessa obra está registado que, como tradição oral, Kapila revelou o conhecimento a Asuri, que passou a Pañchasikha e, por sua vez, transmitiu a Íshwarakrishna, quem, finalmente, o colocou na forma de tradição escrita, o Sámkhya Karika.

Como no caso do Yoga Clássico, essa codificação se tornou um dos trabalhos mais importantes e o mais aceito, a partir do qual o Sámkhya elevou-se à categoria de darshana do hinduísmo. Eis, assim, o Sámkhya Clássico.

Tal filosofia teve uma grande força até a época de Shankaracharya (788-820 d.C.). A partir de então sobreviveu em constante declínio, até que no século quinze experimentou um renascimento quando foi composto o Sámkhya Pravachana Sutra, escritura de base para classificar o Sámkhya como Moderno.

Tal obra inspirou dois eruditos importantes a opinarem e a divulgarem seu conteúdo na Idade Média. Foram eles, Anirudha, em 1.500 d.C. e Vijñána Bhiksu, em 1.550 d.C. Daí por diante, o Sámkhya passou a coexistir com ideias teístas, já que o Vedanta, difundido alguns séculos antes por Shankaracharya, já se encontrava bastante arraigado na sociedade hindu.

Segundo o Mahabharata, há três variantes de Sámkhya. A primeira, mais antiga, tem vinte e quatro princípios; a outra, vinte e cinco; e a terceira, vinte e seis. Essa última categoria inclui Purusha e Ishwara; a variante anterior exclui Ishwara, e a outra, mais antiga, não menciona esses dois princípios. As categorias de 24 ou de 25 princípios são denominadas de Nírishwarasámkhya,

enquanto a mais moderna, de 26 princípios, é designada por Sêshwarasámkhya (Quando Patañjali no século III a.C. fez a codificação do Yoga, foram introduzidos alguns conceitos teístas em sua obra. A filosofia Samkhya, que até então era de um só tipo, passou a ser dividida e qualificada de Niríshwara-samkhya e Seshwara-samkhya.).

O CICLO EXISTENCIAL

O hinduísmo apresenta-nos um conceito chamado duhkha traya, que significa, o triplo infortúnio existencial. Isso diz respeito a uma tomada de consciência de que estamos todos presos no ciclo existencial, o samsara, cujo movimento não tem fim. Vejamos como o Sámkhya analisa essa “miséria existencial”, que possui três raízes ou causas principais.

A primeira raiz se encontra na relação do ser humano com seus semelhantes. Cada um sofre, em maior ou menor grau, de algum tipo de carência, seja física, emocional ou mental.

Também cada um precisa competir por melhores posições na sociedade e, por isso, tem de se condicionar aos costumes e regras estabelecidos pelo dharma (lei humana ou social), na maioria das vezes, não pertinente com o âmago da natureza.

A segunda causa se acha na relação do indivíduo com outros seres da natureza, tais como os animais selvagens e os microorganismos desconhecidos que lhe trazem enfermidades e morte prematura. Ainda, muitas vezes, é a nossa própria sociedade que se permite desenvolver novas bactérias e vírus, dando origem a doenças cada vez mais sofisticadas.

Já a terceira raiz é a relação do homem com as forças da natureza (o homem está sempre infeliz, ora queixando-se do calor, ora do frio, ora da chuva, etc). Ainda pode acontecer uma seca intensa, uma enchente, um terremoto, um furacão, enfim, os grandes cataclismas do planeta.

Evidentemente, existem meios específicos para contornar todas as situações; principalmente, em função do rápido avanço tecnológico e científico que traz mais conforto e uma maior expectativa de vida. Entretanto, os problemas continuarão a surgir, soluções aparecerão e novas questões virão (antes, a peste; depois, o câncer; aids e, amanhã, o que mais será?).

Por outro lado, temos ainda as propostas das religiões ou também de um estado político-social organizado. Conceitos e paradigmas nos vão sendo impostos por uma cultura que, na maioria das vezes, castra nossas maiores possibilidades. Quando observada de um outro ângulo, a esperança proporcionada pelo acreditar, seja na justiça divina, seja na ordem social, apenas nos permite orbitar na periferia.

A maioria desses caminhos são considerados simplórios e não passam de um remédio paliativo de breve validade. É como se apenas podássemos os galhos de uma árvore. Ela continuará de pé, sustentada pelas suas raízes, de onde partirão novos ramos e flores, cujos frutos um dia retornarão à terra, cujas sementes produzirão novas árvores... E é a terra que fornece o alimento mas também o que aprisiona o homem ao eterno movimento cíclico da Natureza. Dentro de uma roda que não pára de girar, somos arrastados ora para cima, ora para baixo, num jogo interminável.

A paz e a tranquilidade nada mais são do que a lacuna entre os conflitos e o sofrimento. A segurança e a riqueza andam numa corda-bamba; e num instante se está feliz, noutro, infeliz.

Seja quem for, faça o que fizer, tenha o que tiver, todos os homens estarão insatisfeitos. Todos trazem em si uma espécie de inquietação e de agitação internas causadas pelo ciclo perpétuo da Natureza.

A intensidade dessas sensações é proporcional ao plano de existência em que esteja cada indivíduo. Às criaturas chamadas inferiores, nada disso tem razão de ser, por exemplo, uma planta,

um inseto ou um cão, que amoldam-se ao seu meio natural. Mas quer sejam seres racionais, quer sejam irracionais, o fato é que todos estamos juntos nas cadeias do nascimento e da morte, aprisionados pelo samsara, o ciclo existencial.

Patañjali escreve no Yoga Sutra (cap. II: vers. 12-15): “O karma tem suas raízes nos obstáculos e é experimentado tanto no nascimento objetivo quanto subjetivo. Permanecendo a existência das raízes, permanecem as consequências (kármicas) que vão determinar tudo: o nascimento, a própria vida e as suas experiências. Estas produzem alegria ou dor, conforme sua causa seja virtude ou vício. Para o discriminativo, tudo provoca a dor, seja devido à antecipação do sentimento de perda, ou a novos desejos produzidos pelos samskaras, ou ainda, a conflitos entre os gunas.”

Imaginemos um homem como um grão de areia se comparado à Terra, a qual nada mais é do que um ponto no sistema solar. Esse, por sua vez, é ínfimo dentro da via-láctea, que também não passa de um minúsculo ponto em relação ao aglomerado de galáxias; assim, ad infinitum. Para cada um desses elementos é atribuído um período de vida, desde uma molécula até uma estrela.

Os darshanas, as escolas de filosofia hindu, tentam uma saída para o movimento incessante da roda existencial, cujas experiências e vivências estão condicionadas ao tempo e cujas transformações estão limitadas ao espaço.

Gaudapada, ao comentar o Samkhya Karika (vers.II), diz:

“Numerosos milhares de Indras (uma das primeiras divindades arianas), de era para era, com o tempo desaparecem, pois o tempo é invencível”. Assim, seja através de uma árvore centenária, de um inseto que vive alguns meses ou de uma galáxia de trilhões de anos, nossas perceções habituais estão lacradas pelo tempo e pelo espaço.

Em relação ao homem, a forma como ele se apresenta, com sua personalidade distinta, com seus desejos particulares ou coletivos, com suas tendências genéticas, instintivas, emocionais e mentais, tudo isso está incluso nessa mesma esfera sem saída, dentro da qual tudo se desenvolve, se desfaz e se transforma.

Para que compreendamos nosso ciclo existencial e, consequentemente, procuremos uma saída para esse drama cósmico, haveremos de começar a nos desapegar (ou nos desprender) de maya. Maya, que significa ilusão, é onde atuam os pares de opostos, tais como: bem e mal, belo e feio, dia e noite, certo e errado, homem e mulher, alegria e tristeza, prazer e dor, etc.

Aqui, observada sob nosso parâmetro humano, toda dualidade é uma realidade. Porém, quando a dualidade é vista de um outro ângulo, tudo aquilo que aos nossos olhos humanos aparece como polos distantes, na verdade, são pontos de um mesmo extremo!

Na Bíblia (Génesis, II: 8-17) está escrito: “E o Senhor Deus tinha produzido da terra todo tipo de árvores formosas e de frutos doces para comer; e havia também a árvore da vida no meio do paraíso, e a árvore da ciência do bem e do mal... E, deu lhe este preceito, dizendo: ‘coma os frutos de todas as árvores do Paraíso, mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal’.” (Aqui não há nenhuma menção à maçã criada pelo folclore. E, na verdade, tal árvore representa o conhecimento do bem e do mal, ou seja, a dualidade, o grande pecado do homem).

No Dhammapada, escritura clássica do budismo, é atribuída ao Buda a seguinte frase: “Aquele que venceu as cadeias do mal, mas também venceu as cadeias do bem, lhe chamo eu, Brahman.” Assim, essas duas obras, de tradições diferentes, dizem respeito à transcendência dos opostos, na qual o indivíduo deve ser, simplesmente, como a Natureza o criou.

Finalizando, existem três maneiras para enfrentar o ciclo existencial: uma resignação consciente, um caminho de saída, ou ainda, uma conciliação entre as duas opções. A partir do momento em que compreendemos as leis e os mecanismos que regem a Natureza teremos mais acesso à libertação e, enfim, poderemos retornar ao paraíso.

OS NÍVEIS DE EVOLUÇÃO NA NATUREZA

Para algumas correntes do Samkhya não-sistemático, existem seis principais estágios, níveis ou planos de evolução na Natureza. E cada um deles se manifesta através de estados de consciência, do mais denso ao mais sutil.


ESTÁGIOS EVOLUTIVOS / ESTÁGIOS DE CONSCIÊNCIA

YOGI / PURUSHA
YOGIN / INTUICIONAL
HOMINAL / MENTAL
ANIMAL / EMOCIONAL
VEGETAL / ENERGÉTICO 
MINERAL / FÍSICO DENSO


A maior parte dos seres humanos é, basicamente, guiada pelos instintos e emoções. Somos, simplesmente, animais que desenvolveram tecnologia. E por questões de sobrevivência, fomos naturalmente desenvolvendo um cérebro mais sofisticado que o das outras espécies e estamos, no máximo, num nível um pouco mais alto do que a maioria dos animais.

Imagine estarmos partindo da Terra no cesto de um balão.

À medida que ele vai subindo, começamos a enxergar as coisas de longe, por exemplo, as estradas, os campos, as montanhas, depois a curvatura da Terra, etc. Também, quando o balão vai retornando e aproximando-se do solo, podemos começar vendo uma floresta, depois uma árvore e suas folhas, uma formiga, uma gota de orvalho, etc. De maneira semelhante, acontecerá com a perceção de cada indivíduo, que poderá situar-se num determinado ângulo de observação; mais acima ou mais abaixo, mais distante ou mais próximo, dentro da realidade fenomenal da Natureza.

Podemos ver, através dos nossos cada vez mais potentes telescópios ou microscópios, algo que não tem fim e também, que nada está fora dos limites da Natureza. Coisa alguma, portanto, deixa de existir, apenas transforma-se e troca de nível.

Quando, por exemplo, uma pessoa morre e seu corpo físico mais denso, formado por minerais, se dissolve na terra, com o tempo, vai sendo incorporado à estrutura química de outras formas minerais, vegetais e animais, ocorrendo assim também uma metamorfose com todos os seus outros corpos. Seus instintos, emoções, pensamentos, etc, apenas se dispersarão, contudo, perdurarão até que, finalmente, se integrem às outras realidades fenomenais.

A morte é temida pelo indivíduo, mas é indispensável à continuidade da espécie. É graças a ela que cada ser proporciona a possibilidade de manifestação a outros seres. E, tanto a morte

quanto a vida, pertencem à mesma realidade do samsara, o ciclo existencial.

Ao gerar um filho, o homem estará transmitindo ao seu sucessor uma extensa combinação genética com informações e dados, dos seus milhares de anos como espécie humana além daqueles mais elementares tipos de vida no planeta, de milhões de anos. Sendo assim, há uma ligação que nos envolve, a todos os seres terrestres, marinhos e aéreos, a todas as formas animadas ou inanimadas, bem como a tudo aquilo que captamos tanto nesta, quanto noutras dimensões do Universo.

Somos filhos da Natureza, gerados e nutridos por ela e tudo que está contido nela faz parte de nós mesmos. E levando nossas perceções a estágios mais altos, podemos enxergar tudo como uma só família. E saberemos que não existem diferenças entre uma pedra, uma flor, um pássaro, um rio, uma estrela distante e nós, seres humanos.



OS GUNAS

Guna significa qualidade. Refere-se às qualificações de determinados estágios na Natureza. Existem três tipos de qualidades (gunatraya): tamas, rajas sattwa.

A diversidade e a complexidade daquilo que concebemos através de nossos sentidos são devidas à interação, alteração e às variações desses três elementos que se dominam, apoiam-se e nunca atuam separadamente.

Em resumo, tamas significa inércia; rajas, movimento e sattwa estabilidade. Suas funções são, respetivamente, a de limitar, a de ativar e a de manifestar a consciência através dos

seus mais variados veículos.

Os gunas estão sempre presentes em todos os planos da Natureza, embora em proporções desiguais; e são os responsáveis pela diversidade das formas e dos fenómenos da Natureza, de maneira que jamais existirão dois indivíduos idênticos. Para que tudo isso fique mais claro, vamos ilustrar com alguns exemplos.

Observemos o funcionamento desses três gunas atuando numa árvore. Tamas seria a raiz que a sustenta na terra firme; rajas, o princípio que levaria o alimento pelos troncos e galhos; e sattwa, aquele que formaria as flores e os frutos. Esses últimos, por sua vez, gerariam novas e diferentes árvores através das suas sementes que caíssem e brotassem do solo, mantendo assim, o ciclo existencial interminável de nascimentos e mortes.

Noutra explanação, vejamos como esses três gunas podem atuar no ser humano.

O guna tamas revela ignorância, insensibilidade, crueldade e inércia, bem como falta de desejos, apetites e emoções. Psicologicamente, é causa de melancolia, cansaço e preguiça. É o desconhecimento total das outras realidades do universo. Entretanto, apesar de seus adjetivos negativos, é o princípio que dá coesão e estrutura aos outros dois. Assim, pode ser simbolizado no corpo humano pelos ossos e pele que atuam como base e suporte. Sem tamas os outros gunas não teriam onde atuar.

O guna rajas prepondera naquelas pessoas que são ativas, apaixonadas, agitadas e instáveis. É representado no corpo humano pelos músculos e membros, proporcionando, principalmente, reflexos rápidos. Esse guna incita aos desejos, aos desagrados, às rivalidades e também dá a capacidade para transpor quaisquer obstáculos. Está sempre associado ao sofrimento, pois a necessidade de se estar em frenética atividade, induz à dispersão, à falta de entendimento e perceção das leis da Natureza.

O guna sattwa atua no homem como um estado de compreensão, satisfação, tranquilidade, reflexão, alegria e felicidade. Pode ser simbolizado dentro do corpo humano pela cabeça. É associado à inteligência e à intuição; assim como também à vitalidade, à saúde, à juventude, à perfeição e à beleza.

Outra função é a de revelar a essência dos demais níveis, já que facilita a perceção de estados mais sutis da Natureza.

A cada momento um dos gunas prepondera sobre os outros. O guna de menor participação, num determinado fenómeno, se associará ao de maior destaque, sendo obrigado a adotar a direção desse último e a contribuir para o seu funcionamento. O guna rajas, por exemplo, está presente mesmo numa rocha, ainda que, aparentemente, paralisado. Apesar de terem propriedades contraditórias, os gunas cooperam, mesclam se e opõem-se entre si e nenhum deles pode ser considerado mais importante ou mesmo ter o poder de aniquilar os outros dois.

KARMA E DHARMA

O termo karma traduz-se por ação e refere-se à lei de ação e reação. Dharma traduz-se por lei e se refere basicamente às leis humanas, regidas pelos costumes, pela época e pelo lugar; e que, por isso, é oposta à lei do karma. Essas duas leis atuam com intensidade no ser humano. Estão interligadas mas não devem ser confundidas.

Karma é um conceito que nasceu nos primórdios da Índia antiga. Dependendo do contexto e da linha de pensamento do hinduísmo em que se enquadre, poderá sofrer distintas interpretações. No geral, a massa popular vê esse princípio sob a lente do teísmo Vedanta e não, como nas origens, segundo o naturalismo Samkhya.

Existe até uma interpretação de karma adaptada à nossa cultura ocidental, com grande influência judaico-cristã. Nela, a ideia de karma passou a ter a configuração de algo ruim, uma espécie de fatalismo que precisa pagar-se com sofrimento. De outras vezes, nessa mesma maneira de enxergar as coisas, há uma desculpa e uma resignação referente àquilo que não se pode alterar ou, em geral, que não se tem coragem para mudar.

Vejamos o que é exposto pelo Mestre DeRose, fiel à tradição hindu e mais condizente com as propostas do Samkhya.

Diz ele: “para o hinduísmo, karma é apenas uma lei de causa e efeito. Do género ‘cuspiu para cima, vai receber uma cusparada no rosto’. A pura lei do karma é simplesmente mecânica e não espiritual, nem sequer moral. Independe de fundamentação reencarnacionista ou até mesmo teísta. Refere-se a um mecanismo da própria natureza. Uma espécie de energia potencial distante do fatalismo que lhe atribuímos”.

“Para exemplificar a flexibilidade desse conceito na Índia, podemos citar um parábola que compara o karma a um arqueiro com suas flechas. O karma teria três estágios: o primeiro, equiparável ao momento em que o arqueiro tem seu arco em repouso e suas flechas descansam na aljava; o segundo, em que coloca uma flecha no arco, tensiona-o e aponta-o para um alvo; e o terceiro, no qual solta a flecha.

“De acordo com essa comparação, tanto no primeiro estágio quanto no segundo, o arqueiro tem controle absoluto sobre o karma, podendo, inclusive no último instante, direcionar sua flecha para outro alvo, tensionar mais ou menos o arco para imprimir maior ou menor potência ao disparo, ou ainda desistir de atirar. Isso corresponde a um domínio de dois terços do karma, o que é bem razoável se comparado com nosso conceito de destino inflexível e sobre o qual não podemos atuar.

“Além disso, qualquer que seja o nosso karma, a liberdade que temos sobre as formas de cumprí-lo é bastante elástica. A sensação de restrição ou impedimento é muito mais decorrente dos próprios receios de mudar e da acomodação das pessoas, do que propriamente da lei de causa e efeito.

“É como se o cumprimento de um karma fosse uma viagem num transatlântico. Você está inevitavelmente dirigindo-se ao seu destino, entretanto, poderá aproveitar a jornada de diversas maneiras. Poderá cumprir o percurso relacionando-se bem ou mal com os companheiros de viagem. A bordo, terá o direito de tomar sol, nadar, ler, dançar, praticar esportes e namorar. Ou de reclamar da vida, da monotonia, do cheiro de maresia, do balanço do navio, do serviço de camarote, do enjoo...

Todos chegarão ao destino, de uma maneira ou de outra. Só que alguns divertir-se-ão bastante no trajeto. Outros vão sofrer. Isso deve-se, preponderantemente, ao temperamento de cada um e não ao karma. Esse é o verdadeiro conceito de karma. O resto é complexo de culpa...

“Muitos confundem o conceito de karma com dharma, atribuindo a este último qualidades que não lhe são pertinentes...

Todavia, o dharma de cada um é bem específico, pois foi determinado pelos costumes do seu tempo e lugar. Para viver bem, com saúde e felicidade, é preciso conhecer essas duas forças para obter a harmonia entre elas, especialmente nos muitos momentos nos quais entram em choque. Há circunstâncias em que o dharma determina que você aja de uma certa maneira e o karma, de outra. Por exemplo: o dharma manda que você, em tempo de guerra, mate. O karma proíbe-o em qualquer circunstância. Como agir? Há muitas soluções. Uma delas é prestar o serviço militar como enfermeiro. Esta manobra dissimulativa é aplicável também em nosso dia-a-dia...” Yoga: Mitos e Verdades, Mestre DeRose.

Além de tudo isso, a lei do karma é aplicada igualmente a um ateu do século XXI, a um muçulmano do século quinze, a um centurião romano, ou a um troglodita pré-histórico. Dessa forma, por não ser regulada pelos costumes, pelo lugar e pela época o karma é atemporal. Patañjali ainda acrescenta a esse respeito:

“Devido aos samskaras e as memórias deles serem idênticos, eles têm relação ininterrupta, apesar de serem separados por tipo, local e tempo.” Yoga Sutra, IV, 9.

EGRÉGORA

(Extraído do livro Yoga: Mitos e Verdades, do Mestre DeRose)

Egrégora provém do grego egrégoroi e designa a força gerada pelo somatório de energias físicas, emocionais e mentais de duas ou mais pessoas, quando se reúnem com qualquer finalidade. Todos os agrupamentos humanos possuem suas egrégoras características: todas as empresas, clubes, religiões, famílias, partidos, etc.

Egrégora é como um filho coletivo, produzido pela interação "genética" das diferentes pessoas envolvidas. Se não conhecermos o fenómeno, as egrégoras vão sendo criadas a esmo e os seus criadores tornam-se logo seus servos já que são induzidos a pensar e agir sempre na direção dos vetores que caracterizaram a criação dessas entidades gregárias. Serão tanto mais escravos quanto menos conscientes estiverem do processo.

Se conhecermos sua existência e as leis naturais que as regem, tornamo-nos senhores dessas forças colossais.

Por axioma, um ser humano nunca vence a influência de uma egrégora caso se oponha frontalmente a ela. A razão é simples. Uma pessoa, por mais forte que seja, permanece uma só.

A egrégora acumula a energia de várias, incluindo a dessa própria pessoa forte. Assim, quanto mais poderoso for o indivíduo, mais força estará emprestando à egrégora para que ela incorpore às dos demais e o domine.

A egrégora se realimenta das mesmas emoções que a criaram. Como ser vivo, não quer morrer e cobra o alimento aos seus genitores, induzindo-os a produzir, repetidamente, as mesmas emoções. Assim, a egrégora gerada por sentimentos de revolta e ódio, exige mais revolta e ódio. No caso dos partidos ou fações extremistas, por exemplo, são os intermináveis atentados.

No das revoluções, frequentemente, os primeiros líderes revolucionários a alcançar o poder passam de heróis a traidores.

Terminam os seus dias exatamente como aqueles que acabaram de destronar (segundo Richelieu, ser ou não ser um traidor, é uma questão de datas).

Já a egrégora criada com intenções saudáveis, tende a induzir seus membros a continuar sendo saudáveis. A egrégora de felicidade, procura "obrigar" seus amos a permanecer sendo felizes. Dessa forma, vale aqui a questão: quem domina a quem?

Conhecendo as leis naturais, você canaliza forças tremendas, como o curso de um rio, e as utiliza em seu benefício.

A única maneira de vencer a influência da egrégora é não se opor frontalmente a ela. Para tanto é preciso ter Iniciação, estudo e conhecimento suficiente sobre o fenómeno. Como sempre, as medidas preventivas são melhores do que as corretivas. Portanto, ao invés de querer mudar as características de uma determinada egrégora, o melhor é só gerar ou associar-se a egrégoras positivas. Nesse caso, sua vida passaria a fluir como uma embarcação a favor da correnteza. Isso é fácil de se conseguir. Se a egrégora é produzida por grupos de pessoas, basta você se aproximar e frequentar as pessoas certas: gente feliz, descomplicada, saudável, de bom caráter, boa índole. Mas também com fibra, dinamismo e capacidade de realização; sem vícios nem mentiras, sem preguiça ou morbidez. O difícil é diagnosticar tais atributos antes de se relacionar com elas.

Uma vez obtido o grupo ideal, todas as egrégoras geradas ou nas quais você penetre, vão induzi-lo à saúde, ao sucesso, à harmonia e à felicidade.

Os antigos consideravam a egrégora um ser vivo, com força e vontade próprias, geradas a partir dos seus criadores ou alimentadores, porém independente das de cada um deles. Para vencê-la ou modificá-la, seria necessário que todos os genitores ou mantenedores o quisessem e atuassem nesse sentido. Acontece que, como cada um individualmente está sob sua influência, praticamente nunca se consegue superá-la.

Se você ocupa uma posição de liderança na empresa, família, clube, etc., terá uma arma poderosa para corrigir o curso de uma egrégora. Poderá afastar os indivíduos mais fracos, mais influenciáveis pelos condicionamentos impostos pela egrégora e que oponham mais resistência às mudanças eventualmente propostas. É uma solução drástica, sempre dolorosa, mas às vezes imprescindível.

Se, entretanto, você não ocupa posição de liderança, o mais aconselhável é seguir o ditado da sabedoria popular: os incomodados que se mudem. Ou seja, saia da egrégora, afastando-se do grupo e de cada indivíduo pertencente a ele. Isso poderá não ser muito fácil, mas é a melhor solução.

Outro fator fundamental neste estudo é o da incompatibilidade entre egrégoras. Como todo ser humano está sujeito a conviver com a influência de algumas centenas de egrégoras, a arte de viver consiste em só manter no seu espaço vital egrégoras compatíveis. Sendo elas, forças grupais, um indivíduo será sempre o elo mais fraco. Se estiverem em dessintonia umas com as outras, geram um campo de força de repulsão e se você está no seu comprimento de onda, ao repelirem-se mutuamente, elas rasgam-no ao meio, energeticamente. Dilaceram suas energias, como se você estivesse sofrendo o suplício do esquartejamento, com um cavalo amarrado em cada braço e em cada perna, correndo em direções opostas.

Esse esquartejamento traduz-se por sintomas, tais como ansiedade, depressão, nervosismo, agitação, insatisfação ou solidão. Num nível mais agravado, surgem problemas na vida particular, familiar, afetiva, profissional e financeira, pois o indivíduo está disperso e não centrado. No grau seguinte, surgem neuroses, fobias, paranóias, psicopatologias diversas, que todos percebem, menos o mesclante. Finalmente, suas energias entram em colapso e surgem somatizações concretas de enfermidades físicas, das quais, uma das mais comuns é o câncer.

Isso tudo, sem mencionar o fato de que duas ou mais correntes de aperfeiçoamento pessoal, se atuarem simultaneamente sobre o mesmo indivíduo, podem romper seus chakras, já que cada qual induz movimento em velocidades, ritmos e até sentidos diferentes nos seus centros de força.

Com relação à compatibilidade, há algumas regras precisas, das quais pode ser mencionada aqui a seguinte: as egrégoras semelhantes são incompatíveis na razão direta da sua semelhança; as diferentes são compatíveis na razão direta da sua dessemelhança. Você imaginava o contrário, não é?

Todo o mundo se engana ao pensar que as semelhantes são compatíveis e ao tentar a coexistência de forças antagónicas, as quais terminam por destruir o estulto que o intentara.

Quer um exemplo da regra acima? Imagine que um homem normal tenha uma egrégora de família, uma de profissão, uma de religião, uma de partido político, uma de clube de futebol, uma de raça, uma de país e assim sucessivamente. Como são diferentes entre si, conseguem coexistir sem problemas. Aquele homem poderia ter qualquer profissão e qualquer partido político, torcer por qualquer clube e frequentar qualquer igreja.

Agora imagine o outro caso. Esse mesmo homem resolve ter duas famílias, torcer para vários clubes de futebol, pertencer a partidos políticos de direita e de esquerda ao mesmo tempo, exercer a medicina e a advocacia simultaneamente e ser católico aos domingos, protestante às segundas e judeu aos sábados!

Convenhamos que a pessoa em questão é psiquiatricamente desequilibrada. Não obstante, é o que muita gente faz quando se trata de seguir correntes de aperfeiçoamento interior: a maioria acha que não tem importância misturar aleatoriamente Yoga, tai-chi, reiki, macrobiótica, teosofia e quantas coisas mais se lhe cruzarem pela frente. Então, bom proveito na sua salada mista!


A TEORIA DOS TATTWAS

Tattwa significa princípio. É através desse conceito que o Sámkhya ganha uma conotação mais sistemática, fazendo jus ao seu caráter técnico e numérico. Os tattwas constituem a espinha dorsal da filosofia Sámkhya.

Existem 24 tattwas, comuns a todas as escolas do Sámkhya. A Prakriti é o primeiro tattwa, a causa primeira. E ela contém necessariamente tanta ou mais realidade que os seus efeitos.

A matéria, que percebemos através de nossa perspetiva hominal, nada mais é do que uma manifestação já existente, indiferenciada no primeiro tattwa. Numa ilustração: quando batemos creme de leite até transformá-lo em manteiga, podemos dizer que o produto final, a manteiga, já se encontrava potencialmente presente no leite, conquanto em outro estado.

Tudo se diferencia, tudo se transmuta, podendo evoluir dos estágios mais densos até os estágios mais sutis da Natureza.

Para que tenhamos uma noção dos principais tattwas, vejamos a seguir a sua estruturação ( Há pequenas variações e interpretações dentro do esquema sinóptico dos tattwas do Sámkhya segundo as diferentes escolas.) , bem condensada.


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O PURUSHA

Purusha é traduzido literalmente como homem. Assim como Prakriti se traduz por Natureza, conquanto envolva muito mais nuances que o próprio termo em si, também esse homem, para o Sámkhya, é um termo bem abarcante, no sentido de essência absoluta ou de chispa de vida, presente em cada tattwa.

Tal princípio equivale ao conceito de Atman da filosofia Vedanta.

Para o Sámkhya, o Purusha é imperecível, inativo e inabalável. Não é afetado pelos opostos dor e prazer, bem e mal, qualidade ( Aqui, podemos observar um outro importante diferencial entre o Sámkhya e o Vedanta. Para o Vedanta, a Mônada, produto final da evolução, possui três qualidades que são: sat, chitta e ananda (ser, consciência e felicidade, respetivamente). De outro lado, para o Sámkhya, essa essência não poderá ter quaisquer atribuições, já que isso corresponderá a uma projeção de nossas expectativas, dentro da limitada dimensão humana em que nos encontramos.) e defeito, etc. Está excluído das características fenomenais dos tattwas, não tem envolvimento algum nos processos da Natureza e nem é influenciado pelos gunas.

Segundo a Kena Upanishad (I, 5,6), o Purusha é “aquilo que não se pode ver, mas pelo qual as visões são vistas. Aquilo que o pensamento não pode pensar, mas graças ao qual o pensamento pensa”.

Conforme a maioria das correntes dentro do Sámkhya, o Purusha pode ser, ao mesmo tempo, singular e múltiplo, homogéneo e heterogéneo. Enquanto a Prakriti, ao emitir o Universo, se transforma e se reveste em tattwas, o Purusha não se altera e permanece sendo ele mesmo, em todo tempo, em todo lugar e além deles.

Não há maneira de conhecer o Purusha por meio do intelecto. Entretanto, uma das maneiras, ou primeiros passos, para chegar ao conhecimento do Purusha, é o desapego, ou desprendimento dos gunas. Segundo Patañjali, “Vairágya (desprendimento) é quando subjuga-se a compulsão pelas dispersões que venham a ser vistas ou ouvidas. Isto proporciona a mais elevada consciência do Homem (Purusha), no qual cessam os gunas (atributos).” Yoga Sutra, I, 15, 16.

A existência desse princípio não pode ser compreendida intelectualmente, a não ser quando é intuído através do tattwa mahat. É a partir desse princípio que o dualismo (maya) desaparece. Por isso, cessam aqui os argumentos que demonstram o Purusha. Em todo caso, o que podemos fazer são apenas algumas considerações, através do raciocínio lógico, anteriores à convicção intuicional.

Há um momento em que, para se chegar de fato à compreensão disso tudo, será preciso parar de pensar. A isto, somente nos é permitido ter alguns vislumbres a partir do dhyana, “intuição linear”, como sintetiza o Mestre DeRose, e que é uma das últimas etapas para se chegar à meta do Yoga. Patañjali define: “Dhyána (meditação) consiste em manter a continuidade da atenção sobre aquela área específica da consciência. Samadhi (hiperconsciência) é quando chitta assume a natureza do objeto sobre o qual se medita, esvaziando-se da sua própria natureza.” Yoga Sutra de Patañjali, III, 2,3.

Aqueles que conseguiram se desvincular da Prakriti compreendem que, para si, como egos independentes, não poderá mais existir vida futura, já que retiraram seus impulsos do processo cíclico, o qual vai esvaindo-se pouco a pouco. Estando isolado dos gunas e dos tattwas, o Purusha é livre dos movimentos de expansão e contração, vida e morte, que caracterizam a Natureza.

ISHWARA

Íshwara traduz-se por senhor e, segundo Mircéa Éliade (El Yoga. Inmortalidad y Liberdad, pág. 83), é o arquétipo do yogi. Tal princípio passou a designar também a divindade, em algumas escolas do Sámkhya, a partir de um certo período da história profundamente marcado pela fé e crenças religiosas.

Na verdade, o Sámkhya nunca se preocupou em afirmar ou negar a existência de Deus, já que, simplesmente, isso não fazia parte de seu contexto original. É correto afirmar que os pré-arianos valorizavam, reverenciavam e até cultuavam todas as formas da natureza (assim como os índios o fazem); por isso é que são chamados de naturalistas. Nessa conceção de vida, toda a natureza pode ser divina.

A referência mais antiga no princípio Íshwara aparece pela primeira vez na Swetaswatara Upanishad. Mais tarde, no século III a.C., Patañjali o definia dizendo: “Íshwara é um Purusha especial não afetável pelas aflições, nem pelas ações ou suas consequências e nem por impressões internas de desejos.

Nele está a semente da omnisciência. É também o Mestre dos mais antigos Mestres, pois não está limitado pelo tempo” (Yoga Sutra, I, 24, 25, 26).

Foi dessa maneira que, a partir de Patañjali, o Sámkhya passou a ser denominado Seshwarasamkhya, Samkhya com Senhor, para diferenciar do outro tipo mais antigo, designado como Niríshwarasamkhya, Samkhya sem Senhor (que por sua vez, é o tipo de Sámkhya do Swasthya Yoga, o Yoga mais antigo, adotado por nós).

Somente a partir da Idade Média é que houve uma tendência em enfatizar esse novo princípio. De lá para cá, começaram a surgir algumas variantes de Sámkhya, bastante influenciadas pela filosofia Vedanta, que imperava na época.

De acordo com tais correntes de Samkhya Medieval, Ishwara é um tipo de Purusha que se deixa, por vontade própria, ser retido pela Prakriti, usufruindo dos processos naturais que a caracterizam. E, ainda que habitando em nossa dimensão, dentro do ciclo existencial, Ishwara está livre do karma.

Esse Purusha especial poderá até coexistir com a dualidade de maya, porém suas ações não produzirão consequências para ele, quer sejam boas ou más. De um lado, deixa-se levar pelo samsára; de outro, é tão incondicionado quanto o Purusha e, como esse, não pode ser racionalmente compreendido.

O princípio Ishwara não teve repercussão em todas as linhas do Samkhya. Haja vista o Samkhya Karika, de Ishwarakrishna, que nem ao menos o menciona. Conquanto tal elemento sempre estivesse discretamente presente nessa filosofia, somente começou a ser propagado dentro da efervescência espiritualista da época medieval, transformando-se, então, num princípio tão importante quanto os vinte e quatro tattwas e o Purusha.

KAIVALYA

Kaivalya traduz-se por libertação. Dentro do hinduísmo, kaivalya representa o nível alcançado por um jíva-mukta (liberado-em-vida). Nesse plano encontra-se o indivíduo que se libertou das leis, dos mecanismos da Natureza e dos limites do ciclo existencial, conquanto ainda nele habite.

Segundo Patañjali, “kaivalya é o estado em que os gunas entram em equilíbrio e se fundem, não tendo mais utilidade para o Púrusha; é o estabelecimento do poder de conhecimento em sua própria natureza.” Yôga Sútra, IV, 34.

Kaivalya, em linguagem Sámkhya, significa transcender todos os tattwas da Prakriti. Ainda que habitando nos planos mais sutis da Natureza, predominantemente sáttwicos, nenhum indivíduo poderá usufruir dessa condição para sempre, já que esses planos são, simplesmente, estados de consciência.

Muitas vezes, uma pessoa se confunde com seus próprios pensamentos, sentimentos e instintos; mas à medida que sutileza suas perceções, é menos escrava deles. Assim, poderá aperceber-se apenas como testemunha e, em princípio, não se deixará influenciar pelos processos que caracterizam a Prakriti.

Enquanto não conseguem deslocar o centro de observação, os homens estão presos ao samsara. Dependentes do mundo dos tattwas, são governados pelos instintos, sentimentos, pensamentos; atrações, temores, vontades, lembranças e esquecimentos. Para pôr fim a uma tal escravidão é preciso que redescubram o que realmente são e que está implícito em todas as manifestações da Natureza.

Dentro de cada ser, o Purusha ilumina todos os tattwas da Prakriti e ainda, encontra-se desapegado e desprendido, mas também, não é cativo nem liberto. De fato, estar livre pressupõe um estado prévio de encarceramento, e não se pode dizer que alguma prisão seja capaz de afetá-lo.

Somente a partir do tattwa mahat, isto é, em estado meditativo, onde os gunas já não interferem tanto, é que o Purusha se sobressai, libertando-se dos processos que persistiam continuamente ao seu redor. O polimorfismo infinito acontece devido aos estados da Prakriti que surgem na forma de: eu vejo, eu faço, eu gosto, etc. E a confusão acontece ao supor que esse “eu” seja o Si Mesmo, o Purusha.

A libertação, kaivalya, consiste em romper o elo de envolvimento entre o Purusha e a Prakriti. Segundo Patañjali “A libertação (kaivalya) é alcançada quando sattwa atinge uma pureza (shuddhi) igual à de Púrusha.” Yoga Sutra, III, 55. Tal libertação somente é possível quando mahat, expressão mais próxima da Prakriti, leva o ahamkara (egoidade) a uma autotranscendência, revelando, finalmente, a essência da Natureza.

Concluindo, para a filosofia Sámkhya, será pela analogia, pela observação da Natureza e, principalmente, a partir do estado de consciência intuicional (dhyána), que poderemos compreender os vários níveis do Universo. Tal compreensão está acima do atual estágio da humanidade, dentro do qual linguagem alguma é capaz de discorrer ou de demonstrar satisfatoriamente.

Assim chegamos numa fronteira, na qual o Sámkhya termina e o Yoga se inicia. O Sámkhya se encerra na especulação e no desenvolvimento de teorias que explicam a existência, mas tal conhecimento se torna estéril quando não é fecundado pela prática do Yoga.



MESTRE SÉRGIO SANTOS
YOGA SAMKHYA E
TANTRA
UMA INICIAÇÃO HISTÓRICA E FILOSÓFICA AO YOGA,
AO SAMKHYA E AO TANTRA, DESDE AS SUAS ORIGENS
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