terça-feira, 7 de agosto de 2018

Transformar-se para transformar: zen para distraídos Monja Coen

Transformar-se para transformar

Só temos que nos comprometer com a cura da vida na Terra, começando por contentar-nos com a nossa existência. E nada disso está em um HD externo ou armazenado na nuvem: está dentro de nós. “Feliz” é uma palavra que vem de “fértil”, “frutífero”. Fértil de ideias, fértil de ternura, fértil de amor. Frutífero de frutos doces, de pessoas amadurecidas. A metáfora do amadurecer deriva do crescer de uma fruta, que se torna madura quando se torna aquilo que deve ser a partir de sua natureza, e quando se torna saboreável e saborosa. Maduro é o ser humano que desenvolveu a sua essência e se tornou uma bênção para os outros.

Mahatma Gandhi, o grande ativista indiano, prega que o melhor na vida é despertar, ter a mente luminosa e esperta, e ver com clareza o que está acontecendo para que possamos ser a transformação que queremos no mundo. E ser esperto não é ser “espertinho”, o que nem sempre traz bons resultados. É, antes de transformar, formar. Temos que nos formar na escola, na faculdade e na vida. Na escola da vida todos entramos, por ela todos passamos e nenhum de nós é reprovado. Alguns aprendem suas lições, alguns não e têm de passar novamente pela mesma lição, pela mesma situação. Para isso é melhor ter a mente desperta.

Há três venenos que contaminam o ser humano: ganância, raiva e ignorância. Eles se misturam e, da mesma forma que diferentes proporções de tintas produzem diversas cores, dessas combinações surgem outros venenos, como o ciúme, por exemplo. Na ganância, impera o eu separado, o ter para si. Nesta sociedade neo moderna, as pessoas são levadas a competir, a possuir mais e mais objetos que deem status social, a mostrar-se para outros – mas a compartilhar menos. Então, perdem-se crítica e ética, porque, afinal, “se os outros estão fazendo o que não é certo, também faço porque não vai fazer diferença”. Mas esse pouquinho acaba fazendo mal à pessoa. E mal para a vida da Terra.

Na raiva, a cegueira leva alguém a ferir quem mais ama. As palavras podem ferir muito mais do que as armas. É preciso saber usá-las, sem querer manipular ou ferir o outro. A raiva precisa ser percebida e trabalhada para ser transformada em compaixão e compreensão. A ignorância é a fonte de toda a raiva. Não se trata de ignorância acadêmica ou erudita, mas de ignorar a Verdade e o Caminho, a interconexão com tudo e todos na Terra, as quatro nobres verdades de Xaquiamuni Buda.

 Atenção! Cuidado com esses três venenos para transformá-los em doação, compreensão e sabedoria suprema. Torne-se uma bênção para os outros, encontre a sua essência e desabroche em ternura, em sabedoria.


Para ilustrar um pouco essa ideia, a história do samurai Musashi ("o senhor dos anéis do Japão, um dos melhores livros que li") é muito curiosa. Ele era muito hábil com duas espadas, e esse talento misturado aos arroubos da juventude fez dele um indivíduo provocador e briguento. Tanto que acabou preso e seria até condenado à morte. Contudo, um monge chamado Takuan Osho (1573-1645) interveio e pediu à polícia que deixasse levar o jovem consigo para o mosteiro, prometendo que iria dar um jeito nele. Frente à morte, o jovem aceitou. No mosteiro, foi pendurado em uma árvore, de cabeça para baixo, e o monge zombava dele a todo instante, chamando-o de tolo, bobão etc. O samurai ficou furioso, claro: cuspia, xingava, sacudia-se.

O monge provocava: “Essa sua raivinha é muito pessoal, muito individual, não faz nada. Se você tivesse uma indignação que fosse além desse seu ‘eu’, você seria capaz de sair dessa árvore”. Veja que frase importante! Pode-se ficar indignado, sim, com coisas que estão além de si mesmo, não porque nos ofendem ou afetam particularmente, mas porque ofendem e afetam muitas pessoas. É esse o tipo de indignação que faz mover o mundo, porque ela leva a pessoa a fazer algo, a procurar a maneira de modificar o que não é benéfico – não por sua causa, mas pela causa de todos. E o guerreiro acalmou-se, ficou curioso e foi tirado da árvore. O monge, então, trancou-o numa salinha para estudar e ele, de fato, estudou os ensinamentos de Buda, estudou a si mesmo e aprendeu a fazer meditação.

Imagine uma vela ao sabor do vento, a chama teimosa que ora cresce, ora diminui, dançando para um lado e outro. De repente, uma lufada forte a agita, e a chama definitivamente se aquieta, descansa, apaga. Assim são nossas mentes e nossos corações, com todas as suas oscilações. “Será que gostam de mim? Será que não?”, “Quero isso, quero aquilo”, “As coisas não estão como eu queria…” Quanta insatisfação! Porém, quando vem o vento da sabedoria suprema, a mente se aquieta e o coração fica em paz, pois a realidade passa a ser percebida como é – ou, pelo menos, nasce um entendimento de que existe uma razão maior, mesmo que não se possa alcançar a sua compreensão.

É uma procura que exige atravessar caminhos difíceis, escalar montes íngremes e irregulares, mas que revela, lá do alto, uma visão clara de toda a realidade. Em uma aula, via YouTube, o professor Faustino Teixeira, da Universidade Federal de Juiz de Fora, aborda a espiritualidade em relação às religiões. Argumenta que existe algo que ele chama de “mistério”, e que esse mistério tem as suas irradiações, e que essas irradiações vão criar diferentes religiões. Por conseguinte, essas religiões todas – budismo, cristianismo, kardecismo, islamismo, judaísmo, tradições de origem africana etc. – são como um grande círculo, vivem nessa circularidade. Assim, quando a pessoa começa a se aprofundar em sua própria tradição espiritual, vai procurar chegar ao centro desse círculo, mas, conforme vai indo para o centro, afasta-se da sua própria tradição; e é nesse centro do círculo que todos os místicos se encontram – e aí está a espiritualidade. A pessoa, 

centro do círculo que todos os místicos se encontram – e aí está a espiritualidade. A pessoa, então, já não mais está amarrada à sua tradição espiritual. Não que a tenha abandonado, mas porque foi mais a fundo, porque foi ao encontro de uma experiência única, que é a da interiorização, a da procura interior.
As pessoas em geral gostam de procurar fora. Dizem que se fatos bons lhes acontecem é porque Deus assim proveu, mas se os fatos são ruins foi o Diabo quem determinou. Mas essa perspectiva é externa, vem de fora das pessoas. Repito: as causas e condições são criadas por nós mesmos.

 Agora, é hora de começarmos a entrar em nós mesmos para nos conhecermos em profundidade, para encontrar o que no budismo chamamos nosso eu verdadeiro, a natureza Buda, natureza iluminada que está presente em tudo e em todos o tempo todo.

“Quebrar um hábito é difícil, requer plena atenção”, escreveu Coen Rôshi em seu livro A sabedoria da transformação (ed. Planeta, 2014). Difícil, mas possível. Primeiro, é necessário observar a si mesmo em profundidade. As práticas da ioga, do tai chi, do chi kung, as práticas de meditação, todas elas deixam você encontrar o observador de si mesmo. 


Você se vê em profundidade. Como está sentindo, como está percebendo o mundo e como está respondendo ao mundo. Mas o ser humano abriga uma tendência a criar hábitos. “Mas eu sou assim”, “Mas não, isso não está dando certo”, “Não, não está dando bons resultados, mas eu sou assim, não tem jeito”. Tem jeito, sim. 

Só que vai exigir esforço. Sem esforço, sem transformação, porque nos habituamos a vícios, até mesmo nas maneiras de falar com as pessoas, de pegar os objetos, e não percebemos mais o que estamos fazendo. Por isso, voltar a perceber a si mesmo é uma possibilidade de modificar aquilo que não está dando bons resultados, que você não está considerando benéfico na sua vida e nos seus relacionamentos.

Então, é preciso olhar! Olhar naqueles cantinhos da mente, embaixo do tapete, que você foi deixando para outra hora, que o incomodam e nos quais você não quer mexer. Dar uma olhada. Talvez seja lixo mesmo, então jogamos fora. Não precisa guardar em cantinho nenhum. É só olhar e limpar.

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